quinta-feira, 12 de março de 2020

Porque participaram tantos países nas missões do Kosovo? Por Pascoal Santos Pereira

Ref; https://journals.openedition.org/eces/327

Resumo

Na sequência da intervenção militar da OTAN na Jugoslávia em 1999, a resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU estipulou o envio de forças internacionais para garantir a estabilidade e a administração do Kosovo. A força internacional de segurança então organizada pela OTAN, a KFOR, contou com um número particularmente elevado de Estados participantes (38 no total). O propósito do presente trabalho é, pois, o de responder à questão "Porque participaram tantos países nas missões do Kosovo?", fazendo um breve levantamento das motivações para uma tão significativa participação internacional.
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1Juntamente com a detenção de Radovan Karadzic, acusado de crimes de genocídio pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIJ) em 2008, a declaração da independência do Kosovo em 2007 pode ser considerada como um dos mais importantes acontecimentos recentes resultantes do desmantelamento violento da antiga Jugoslávia, que se iniciou formalmente em 1991. Apesar da progressiva aproximação política de Belgrado à União Europeia (como consequência da sua cooperação com o TPIJ (UE, 2009)) e de ter conseguido alcançar o estatuto de potencial candidato à adesão à UE, o carácter unilateral desta declaração de independência não permite qualquer optimismo quanto a um futuro pacífico na região dos Balcãs Ocidentais. Estando esta declaração em apreciação pelo Tribunal Internacional de Justiça da ONU, não se espera que a Sérvia aceite este facto com facilidade, socorrendo-se por um lado no princípio da inviolabilidade das fronteiras e apoiando-se, por outro lado, no papel que esta região representa na mitologia nacionalista sérvia e onde presentemente ainda se encontra uma significativa presença de forças internacionais.

2Esta presença no Kosovo deve entender-se num quadro alargado de missões de manutenção de paz nos Balcãs Ocidentais desde há já 17 anos. Não só por serem missões desenvolvidas num determinado contexto histórico, político e geograficamente próximo, como também por se encadearem cronologicamente e se corrigirem sucessivamente os maus passos da missão anterior. Assim, na sequência da intervenção militar da OTAN contra a Jugoslávia em 1999, foi implementada uma força de manutenção de paz na qual desde então já participaram 38 Estados. É este número invulgarmente elevado que suscita algumas questões, nomeadamente acerca das motivações que os levaram a querer participar. O propósito deste trabalho é, antes de mais, o de situar histórica e politicamente esta missão de paz, isto é, os factores que a fizeram despoletar. No seu seguimento, serão levantadas algumas hipóteses sobre os motivos que levaram um número tão invulgarmente elevado de países a participar nesta missão.

3O nosso propósito não será o de apresentar as motivações individuais de cada um dos Estados, mas antes o de tentar encontrar algumas motivações que sejam comuns a grupos de Estados. Num primeiro momento, serão analisadas as motivações de actores regionais como a União Europeia (UE) e a OTAN, cuja totalidade de Estados membros participou na missão de paz do Kosovo. Serão, de seguida, apresentadas algumas motivações de outros grupos de Estados com interesses comuns na participação na KFOR, os Estados candidatos à adesão à UE e à OTAN e os Estados balcânicos vizinhos. Por fim, procederemos a uma breve análise das motivações individuais de dois Estados, a Alemanha e a Rússia, cujas participações têm motivações mais específicas e um alcance internacional que merecem uma atenção particular. Concluiremos este trabalho com algumas notas breves sobre outras questões suscitadas por este exercício, por um lado o verdadeiro significado de uma presença internacional tão forte no Kosovo no quadro de uma ordem internacional liberal e, por outro lado, a comparação desta presença com a de uma missão de peacekeeping preventiva da ONU na vizinha Macedónia, de 1992 a 1999.

•1 Símbolo de uma "cultura da vitimização" própria dos povos desta região segundo Jason Franks e Olive (...)

4O Kosovo é uma região histórica da Sérvia, considerada o seu berço e o símbolo da sua resistência a todas as adversidades, uma vez que a Sérvia foi derrotada pelo exército otomano em 1389 em Kosovo Polje, no actual Kosovo (e ocupada pelo Império Otomano desde então até ao século xix. A data é ainda hoje celebrada pelos sérvios como símbolo da resistência nacional à ocupação estrangeira. No entanto, constitui simultaneamente um importante centro do nacionalismo albanês, uma vez que foi precisamente neste território que nasceu esse movimento no final do século xix (Moncada, 2001: 119). A presença de albaneses nesta região foi reforçada no período da Segunda Guerra Mundial, quando a Itália ocupou a Albânia e anexou o Kosovo. A sua presença foi reconhecida através da atribuição da autonomia política em 1974, mas que seria retirada por Slobodan Milosevic, enquanto Presidente da Sérvia em 1989: a inversão da composição demográfica do Kosovo a favor dos albaneses tornou-se preocupante para os nacionalistas sérvios, sendo que os extremistas falavam em "genocídio demográfico" (O'Neill, 2002: 21). Estes movimentos souberam manipular memórias históricas e criar um discurso alarmista de cerco por parte dos albaneses muçulmanos do Kosovo, cujo peso demográfico aumentava, ameaçando assimreeditar a ocupação turca do século xiv.1 Do mesmo modo o faziam em relação aos croatas, que tinham perseguido sérvios durante a Segunda Guerra Mundial e que, segundo esse discurso, iriam voltar a fazê-lo na nova Croácia independente e na Bósnia-Herzegovina.

5No princípio da década de 1990, ao contrário do que aconteceu em grande parte do território da antiga Jugoslávia, o Kosovo não constituiu um foco de tensão significativo. Por um lado, toda a comunidade internacional tinha a sua atenção dirigida para a Croácia e a Bósnia-Herzegovina e a crescente repressão sérvia no Kosovo não era visível; por outro lado, a resistência kosovar-albanesa aos abusos sérvios, liderada pela Liga Democrática do Kosovo (LDK) de Ibrahim Rugova, assentava num modelo de não-violência activa ao poder central de Belgrado para obter a sua emancipação política (Mertus, 2009: 466).

6Os Acordos de Dayton em 1995 revelar-se-iam frustrantes para os kosovares albaneses pois não havia qualquer referência à sua condição política no texto (Webber, 2009: 449). Esta frustração foi alimentada por um outro grupo resistente kosovar-albanês, o Exército de Libertação do Kosovo (UCK), criado em 1993 e que até então agia muito isolada e pontualmente. A partir de 1995, com um apoio popular crescente, iniciou uma estratégia mais agressiva, com ataques mais frequentes e coordenados aos interesses sérvios e que teria uma expansão muito significativa a partir de 1997, quando se instalou o caos civil e político na Albânia, com a falência do sistema de poupanças em pirâmide (Moncada, 2001: 75). Durante esse período de revolta registaram-se assaltos, por parte da população, a quartéis e depósitos de armamentos e munições, que passaram a circular livremente pelo mercado negro, em quantidade e a baixo custo (Moncada, 2001: 75). Pelo carácter poroso da fronteira, que permite não só a passagem fácil de produtos como de pessoas (muitos militantes do UCK tinham recebido treino militar na Albânia), muito desse arsenal bélico serviu para armar a resistência kosovar-albanesa e dar-lhe uma maior capacidade de intervenção (Mertus, 2009: 469).

7Entrou-se então num período de escalada de violência alimentada pelo UCK e de retaliação desproporcionada das forças jugoslavas a civis, que tiveram como efeito a deslocação forçada de milhares de kosovares albaneses, muitos dos quais tiveram de se refugiar em Estados vizinhos. Com a entrada de uma missão de verificação do cumprimento da retirada imediata das forças jugoslavas do Kosovo (segundo as disposições das Resoluções 1160 e 1199 do Conselho de Segurança da ONU, ambas de 1998) e com os relatórios e informação que foi sendo compilada, constatou-se que a violência perpetrada contra os civis albaneses no Kosovo não era isolada, sendo planeada e organizada ao mais alto nível (Moncada, 2001: 62).

8O fracasso da Conferência de Rambouillet, na qual se tentou negociar o fim da violência no Kosovo e atribuir uma autonomia política muito alargada a este território, conduziu ao início da Operação Força Aliada na Primavera de 1999, por parte da OTAN, que bombardeou a Jugoslávia durante 3 meses, sem mandato do Conselho de Segurança da ONU, até que Belgrado anuísse a retirar as suas forças do Kosovo. O acordo de paz final assinado em Kumanovo na Macedónia entre a força da OTAN no Kosovo e Belgrado e que pôs fim aos bombardeamentos foi seguido da Resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU, que estipulou o envio imediato de uma força internacional civil e militar para o terreno para a administração e reconstrução do Kosovo.

•2 Todos os Estados da OTAN e da UE àquela data para além de a Arménia, o Azerbaijão, a Bulgária, os E (...)
•3 A divisão do Kosovo em 5 sectores pela KFOR não deixa de lembrar a divisão semelhante a que a Alema (...)

9Esta operação civil (conduzida pela UNMIK - Missão da ONU para a administração interina do Kosovo e onde a UE participa activamente desde o seu início) e militar (conduzida pela OTAN, através da KFOR) é considerada, no seu conjunto, a mais complexa operação jamais realizada à data (Franks e Richmond, 2008: 81), tanto pelo número de Estados militarmente presentes (num total de 38 Estados,2 50 000 mil soldados provenientes tanto de Estados-membros da OTAN como de Estados terceiros num período inicial), como por ser o primeiro protectorado internacional (não declarado) em décadas.3

•4 E mais facilmente condicionada pelo interesse próprio de quem intervém do que pelo interesse das ví (...)

10Em Kosovo – An unfinished Peace, William G. O' Neill questiona o que terá levado a que fossem afectados tantos recursos ao Kosovo, em comparação com situações semelhantes, ou ainda piores, em países como Angola, a Serra Leoa e o Congo (2002: 32). Não que seja expectável fazer uma comparação pela quantificação da violência, mas esta questão torna-se mais premente ainda quando, desde o início, a intervenção da comunidade internacional no território jugoslavo foi sempre muito questionada a vários níveis (legitimidade, legalidade, amplitude, oportunidade, proporcionalidade).4 Neste quadro, como entender então um espectro tão alargado de países participantes nas missões de manutenção de paz no Kosovo após a assinatura do acordo de paz?

11Juntamente com o muito questionável conceito de "intervenção limitada" à revelia do Conselho de Segurança da ONU (Ortega, 2001: 51) e que sustentou a intervenção da OTAN na Jugoslávia em 1999, assiste-se também a uma crescente regionalização da segurança internacional, sendo que organizações regionais garantem a operacionalização de missões de manutenção de paz que possam vir a ser accionadas. No caso específico do Kosovo, tanto a UE como a OTAN tiveram um papel activo nesta missão, envolvendo a totalidade dos seus Estados-membros.

12Primeiro que tudo, existia o precedente das guerras na Croácia e na Bósnia-Herzegovina, em que a UE não tinha conseguido reagir em nome próprio, pois na altura não tinha ainda nem instrumentos militares próprios, nem instrumentos políticos, nem sequer uma convergência de vontades entre Estados-membros que permitisse uma acção internacional antecipada e autónoma (Portugal, 2001: 78-81). A Comunidade Económica Europeia tinha-se transformado em UE em 1992 com o Tratado de Maastricht, no qual se definiu uma Política Externa e de Segurança Comum (PESC) que entra logo em crise, ainda antes de o Tratado entrar em vigor (Leitão, 2003: 66). As posteriores revisões dos Tratados, de certa forma decorrentes do fracasso da UE na Bósnia-Herzegovina (Shepherd, 2009: 513) e o seu assumido e crescente papel como actor em questões de segurança europeia (principalmente após a Cimeira bilateral de Saint-Malo em 1998 entre o Presidente francês e o Primeiro-Ministro britânico) deram um impulso para a necessidade de testar a nova arquitectura de segurança europeia no quadro da Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD), que se queria agora exemplar e autónoma em relação aos EUA. O envolvimento da UE nas questões de segurança é eloquentemente ilustrado pela sua crescente responsabilização no Kosovo, ao substituir gradualmente a UNMIK na sua missão de estabilização e reconstrução (Cottey, 2009: 600).

•5 Noutra perspectiva, "America does the cooking; Europe does the washing up" (Gowan, 2008: 86).

13Se, por um lado, o envolvimento maciço dos Estados-membros da UE se entende também como uma obrigação moral europeia em conseguir dar resposta a catástrofes humanitárias no seio da Europa (Shepherd, 2009: 513), por outro lado este envolvimento maciço é consentâneo com a pressão cada vez maior exercida pelos EUA para uma maior participação e autonomia dos seus parceiros europeus nas questões de defesa e segurança regional. Os EUA tinham liderado a campanha aérea contra a Jugoslávia e pretendiam ter um papel mais discreto na operacionalização da KFOR e em número de efectivos no terreno (segundo dados da OTAN, em Junho de 2009 (OTAN, 2009), havia 1483 soldados americanos no Kosovo, contra 2350 alemães, 1935 italianos e 1368 franceses).5

14Para a OTAN (enquanto organização no seu todo, mas também para cada um dos Estados-membros da organização), também este foi um momento de afirmação muito importante (Moncada, 2001: 56): a organização tinha acabado de admitir três novos membros que tinham feito parte do extinto Pacto de Varsóvia (Polónia, República Checa e Hungria), seu antigo inimigo estratégico, dando uma dimensão mais continental a esta aliança de geografia tradicionalmente mais norte-atlântica. Para além desse alargamento geográfico, na Cimeira de Washington em 1999 o seu conceito estratégico foi revisto de acordo com o novo quadro geopolítico saído do fim da Guerra Fria, deixando de se entender como mera aliança defensiva e passando a entender-se como actor directamente comprometido com a manutenção da paz e da segurança internacionais, admitindo alargar o seu espaço de acção para além do seu espaço geográfico em "intervenções fora de área" (Cottey, 2009: 599).

15Um grupo de países que participou em peso foi o dos então candidatos à entrada na UE e na OTAN (Eslováquia, Eslovénia, Lituânia, Letónia e Estónia) que, assim, podiam provar aos seus novos aliados que eram parceiros de confiança para situações de crise internacional e aumentar o seu prestígio internacional. A sua adesão a estas organizações internacionais dependia também de outros factores (políticos, económicos, geopolíticos), mas a sua entrada posterior não pôde deixar de ser vista como uma recompensa pelo empenho demonstrado na manutenção da paz no continente.

16A participação de outro grupo de países como a Grécia, a Turquia, a Bulgária e a Roménia remete-nos para uma preocupação com o posicionamento geoestratégico do Kosovo, que é eloquente da fragilidade e dependência da segurança internacional em relação à violência na região, tanto pelo perigo de contágio que representa de forma directa (nas voláteis Albânia e Macedónia), como por poder envolver outros actores importantes no equilíbrio regional (Grécia e Turquia) (Perkins e Neumeyer, 2008: 900), como ainda pelo fluxo de refugiados que esses países vizinhos receberam como consequência do conflito. Estima-se, aliás, que só na Primavera de 1999, mais de 800 000 kosovares se tenham visto obrigados a refugiar-se na Albânia, Montenegro e Macedónia, o que constitui uma causa directa para o aumento da violência inter-étnica na Macedónia em 2001 (Cottey, 2009: 597).

17O efeito de contágio a estes Estados não seria do interesse dos EUA, sendo que os Balcãs são cruciais como ponto de passagem e plataforma logística dos EUA em direcção ao Cáucaso, ao Médio Oriente e ao Irão; envolver algum dos seus aliados num conflito regional alargado comprometeria seriamente a sua rede de interesses geoestratégicos na região (Moncada, 2001: 59). Os Balcãs são também um ponto de passagem obrigatório para os gasodutos vindos da zona do Mar Cáspio (tanto pela Rússia como pela Turquia) em direcção à Europa Ocidental, pelo que a estabilidade política desta região é fundamental para o êxito destes projectos.

18Sem particularizar demais as motivações de cada Estado na sua participação na KFOR, há alguns actores que convém referirmos, o mais importante dos quais é a Alemanha. A sua presença no Kosovo foi altamente simbólica do seu regresso a uma "normalidade" internacional (Heinemann-Grüder, 2001: 43) que lhe tinha sido vedada desde 1945 (quer por ter estado sob ocupação, quer por ter sido posteriormente dividida em dois Estados, quer por a sua soberania ter sido mitigada durante a Guerra Fria). Durante esse período, o seu estatuto de "anão" em questões de política externa (Miskimmon, 2009: 572-3) não lhe permitia mais que uma "diplomacia do livro de cheque". A reunificação da Alemanha e a chegada ao poder da primeira geração de políticos nascidos no pós-guerra explicam o seu envolvimento central nesta sua primeira presença militar fora das suas fronteiras desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Podemos também referir o receio do relativo isolamento internacional que a Alemanha poderia sofrer caso persistisse na sua linha de política externa clássica de não utilização de força militar no exterior (Hyde-Price, 2001: 21-2). Esse receio não era de todo infundado, tendo em conta que, em matérias de defesa e segurança europeias, a Alemanha tinha até então um papel meramente reactivo e secundário, como se pôde constatar em iniciativas como a Cimeira bilateral de Saint-Malo (Heisbourg, 2000: 2). Sem abandonar radicalmente a sua habitual política externa específica, os governantes alemães conseguiriam conciliar o compromisso político para com o multilateralismo (never alone), com compromissos morais perante catástrofes humanitárias (never again) (Maull, 2000: 11-12) e justificar a sua presença no Kosovo.

•6 O plano inicial da Rússia passaria por ser responsável por um dos sectores em que a KFOR dividiu o (...)

19Outra presença a salientar é a da Rússia, que tinha representado, juntamente com a China, um muro de bloqueio a uma intervenção militar na Jugoslávia, quando esta questão foi levantada no Conselho de Segurança. A sua relação especial com a Sérvia, assente num "mito de irmandade eslava", justificou a sua defesa à causa jugoslava mas também a sua posterior participação na KFOR (Mendeloff, 2008: 42). A sua presença tanto legitima o projecto de restabelecimento de paz nos Balcãs junto da Sérvia,6 como lhe permite marcar a sua posição como potência com interesses nesta região, o que aliás dá continuidade à presença anterior da Rússia na IFOR/SFOR na Bósnia-Herzegovina (Khotkova, 2002: 18).

•7 À excepção de alguns Estados muçulmanos que apoiaram ou, pelo menos, não criticaram essa intervençã (...)

20Desta breve análise às motivações que levaram tantos Estados a participarem na missão de paz do Kosovo, são-nos suscitadas duas observações. A primeira prende-se com o peso predominante de Estados da região "euro-atlântica" nesta missão. Do conjunto de Estados identificados, apenas Marrocos e os Emirados Árabes Unidos se inserem claramente fora deste espaço geográfico. Ocorreria aqui perguntar "porque houve tão poucos países fora da região euro-atlântica a participar nas missões do Kosovo?". Podemos avançar como possível motivo uma posição crítica generalizada dos Estados não ocidentais à intervenção da OTAN na Jugoslávia,7 ela mesmo devedora da doutrina de "intervenção humanitária", culminar de uma ordem internacional liberal surgida no pós-Guerra Fria (Cottey, 2009: 602-3). Esta posição crítica reflectir-se-ia também posteriormente no distanciamento destes Estados em relação a todo o processo de peacebuilding no Kosovo, em que todo o programa externo da paz liberal é imposto, sem ter em conta a realidade específica desta sociedade em reconstrução pós-bélica, criando assim novos obstáculos a uma paz autosustentada (Franks e Richmond, 2008: 98-9).

21A outra observação partiria da constatação da presença de uma força internacional no Kosovo apenas a partir de 1999, enquanto na vizinha Macedónia a primeira missão de peacekeeping preventiva está presente desde 1992 (Björkdahl, 2006: 216). Porquê tanta antecipação na Macedónia? Porquê tanto cuidado preventivo numa região remota da antiga Jugoslávia, logo desde o início do desmantelamento desta, quando, pelo caminho, todas as restantes repúblicas foram sofrendo gradualmente, a um maior ou menor grau, as dores da separação? A verdadeira caixa de Pandora balcânica será a Macedónia (Moncada, 2001: 120)? Será o Kosovo apenas um "alerta laranja" para o que pode acontecer na Macedónia e se tentou evitar a todo o custo até agora? Uma eventual intervenção na Macedónia não seria facilitada pela simples presença das forças internacionais no Kosovo?

22Pode ser mera especulação, mas não deixa de ser curioso ler a História dos Balcãs na passagem do século xix para o século xx, em que a "Questão macedónica" alimentou as guerras balcânicas que envolveram a Sérvia, a Bulgária, o Montenegro, a Grécia e o Império Otomano. O controlo deste território era absolutamente estratégico, tanto pela questão do controlo dos Estreitos, como por nele se cruzarem duas vias de comunicação terrestres, numa região montanhosa de muito difícil acesso e que ligaria Belgrado a Salónica e o Adriático ao Egeu (Boniface, 2000: 102). Simultaneamente, em termos estratégicos, essas rotas corresponderiam ao cruzamento de dois eixos geopolíticos históricos: Sérvia-Grécia e Albânia-Turquia (Moncada, 2001: 117). A união dos Eslavos do Sul terá sido apenas um parêntesis cujo fim faz ressurgir toda uma série de assuntos não resolvidos ainda antes da Primeira Guerra Mundial (Hobsbawm, 2004: 158)?

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