EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
JOAQUIM PEDRO DE MORAIS FILHO, brasileiro, portador do CPF nº 133.036.496-18, vem, com o devido respeito e acatamento, perante Vossa Excelência, com fundamento no artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, e nos artigos 647 e 648, inciso I, do Código de Processo Penal, impetrar a presente ordem de
HABEAS CORPUS COLETIVO PREVENTIVO
COM PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR
em favor de TODA A COLETIVIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, em face de ato manifestamente ilegal e inconstitucional consubstanciado no Decreto Estadual, publicado no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro em 19 de agosto de 2025, de autoria do EXCELENTÍSSIMO SENHOR GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, e, por consequência, dos atos a serem praticados pelo ILUSTRÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DA LOTERIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (LOTERJ), autoridades aqui apontadas como coatoras, pelos fatos e fundamentos jurídicos a seguir expostos.
EMENTA
HABEAS CORPUS COLETIVO PREVENTIVO. DECRETO ESTADUAL QUE REGULAMENTA A EXPLORAÇÃO DE TERMINAIS DE VÍDEO LOTERIA (VLTs). USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE SISTEMAS DE SORTEIOS E DIREITO PENAL (ART. 22, I E XX, CF). EQUIPAMENTOS CUJA OPERAÇÃO SE AMOLDA PERFEITAMENTE AO TIPO CONTRAVENCIONAL DE JOGO DE AZAR (ART. 50 DO DECRETO-LEI Nº 3.688/41). IMPOSSIBILIDADE DE NORMA ESTADUAL AFASTAR A INCIDÊNCIA DE LEI PENAL FEDERAL. SÚMULA VINCULANTE Nº 2. AMEAÇA IMINENTE E DIRETA À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO DE TODA A COLETIVIDADE. NEXO CAUSAL INEQUÍVOCO ENTRE A EXPLORAÇÃO DE JOGOS DE AZAR E O FORTALECIMENTO DE ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS (MILÍCIAS E NARCOTRÁFICO) NO RIO DE JANEIRO. RISCO CONCRETO DE ESCALADA DA VIOLÊNCIA, EXTORSÃO E CORRUPÇÃO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA (ART. 37, CF). ATO ESTATAL QUE FOMENTA A CRIMINALIDADE E A DESORDEM SOCIAL. PRESENÇA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES PARA A CONCESSÃO DE MEDIDA LIMINAR.
I - SÍNTESE FÁTICA
Em 19 de agosto de 2025, a sociedade fluminense foi surpreendida com a publicação de um Decreto Estadual que, a pretexto de regulamentar serviços lotéricos, escancara as portas para a exploração em massa de "Video Lottery Terminals (VLTs)" e equipamentos análogos em estabelecimentos comerciais por todo o estado. O ato normativo, objeto da presente impugnação, representa um sofisma jurídico: tenta-se, por via administrativa, conferir aparência de legalidade a uma atividade que constitui, em sua essência, a contravenção penal de exploração de jogo de azar.
A iminente proliferação desses terminais eletrônicos constitui ameaça real, grave e iminente à liberdade de locomoção de toda a população. Não se trata de um temor abstrato, mas de uma conclusão lógica e empiricamente validada pela trágica realidade da segurança pública no Rio de Janeiro. A história recente, documentada em inúmeras operações policiais e reportagens, demonstra que o controle de máquinas de apostas ilegais é um dos pilares financeiros das organizações criminosas que aterrorizam o estado, notadamente as milícias e facções do narcotráfico. A legalização de fato dessa prática, portanto, não apenas fortalecerá esses grupos, mas criará um ambiente de anomia generalizada, cerceando a liberdade de ir e vir do cidadão comum, refém da violência, da extorsão e do medo.
II - DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS
II.A - DO CABIMENTO DO HABEAS CORPUS COLETIVO E DA AMEAÇA À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO
A moderna hermenêutica constitucional, liderada por esta Suprema Corte, ampliou o alcance do Habeas Corpus para além da clássica proteção contra a prisão ilegal, abarcando toda e qualquer ameaça, ainda que indireta, ao direito fundamental à liberdade de locomoção (art. 5º, XV, CF). Como leciona o mestre Rui Barbosa, o Habeas Corpus é a "pedra de toque" das liberdades públicas.
No caso em tela, a ameaça não é a prisão, mas algo talvez mais insidioso: a submissão da coletividade a um regime de medo imposto por organizações criminosas fortalecidas pelo próprio Estado. A liberdade de ir e vir é aniquilada quando o cidadão não pode transitar por sua rua, frequentar o comércio local ou simplesmente viver em paz, sob o risco constante de ser vítima de disputas territoriais, extorsões ou da violência endêmica financiada pelo jogo.
A coletividade, aqui, é o paciente. A decisão no HC 143.641/SP (Rel. Min. Ricardo Lewandowski) é o farol que ilumina o cabimento do presente writ. A população fluminense, como um todo, é o grupo vulnerável cuja liberdade está sob ameaça direta por um ato do poder público que, ao invés de promover a segurança, fomenta o seu contrário.
II.B - DA FLAGRANTE INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL: USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO
O Decreto padece de vício de origem insanável, pois o Estado do Rio de Janeiro legislou sobre matérias de competência privativa da União, violando frontalmente o pacto federativo.
Primeiro, ao disciplinar o funcionamento de máquinas de aposta eletrônica, o Estado invadiu a competência da União para legislar sobre "sistemas de sorteios" (Art. 22, XX, CF). A decisão desta Corte nas ADPFs 492 e 493 permitiu aos estados explorar modalidades lotéricas, mas sempre nos limites da legislação federal. O Decreto-Lei nº 204/67, que rege as loterias federais, define loteria como um jogo com bilhetes numerados e sorteios públicos. Os VLTs não são loteria; são jogos de azar eletrônicos, instantâneos e individuais, uma modalidade completamente distinta e não prevista na legislação federal que os estados devem observar.
Segundo, e mais grave, o Estado usurpou a competência da União para legislar sobre Direito Penal (Art. 22, I, CF). Ao criar um regime administrativo para uma atividade tipificada como contravenção penal, o decreto tenta, por via transversa, abolir a incidência do Art. 50 do Decreto-Lei nº 3.688/41 em seu território. Trata-se de uma "descriminalização administrativa" inconstitucional, vedada pela Súmula Vinculante nº 2, que estabelece ser "inconstitucional a lei ou ato normativo estadual ou distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias". Se nem por lei o Estado pode fazê-lo, muito menos por decreto.
II.C - DA INEQUÍVOCA NATUREZA DE JOGO DE AZAR: VIOLAÇÃO DIRETA À LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS
A tentativa de diferenciar os VLTs dos "caça-níqueis" com base no "monitoramento em tempo real" é um artifício retórico que não resiste à análise jurídica. O critério legal para definir jogo de azar, conforme o Art. 50, § 3º, 'a', da LCP, é um só: "o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte".
Como ensina o saudoso Nélson Hungria, a álea (sorte) é o elemento central que define o jogo de azar. Nos VLTs, a habilidade do jogador é nula ou irrelevante. O resultado é ditado por um algoritmo (RNG), sendo a sorte o fator exclusivo da vitória ou derrota. O monitoramento centralizado não altera essa natureza; apenas fiscaliza a arrecadação e, em tese, a integridade do software, mas não retira o caráter aleatório do resultado.
"Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele:
Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa (...)"
Portanto, o Decreto Estadual não está regulamentando uma atividade lícita. Está criando um arcabouço administrativo para a prática sistemática e generalizada de uma contravenção penal, em um claro e inaceitável desvio de finalidade do poder regulamentar.
II.D - O DECRETO COMO INSTRUMENTO DE FOMENTO À CRIMINALIDADE ORGANIZADA
Este é o ponto mais dramático e que fundamenta a urgência deste Habeas Corpus. No Rio de Janeiro, a exploração de jogos de azar não é uma mera contravenção; é o combustível de uma máquina de guerra. É fato público e notório, comprovado por sucessivas investigações do Ministério Público e das Polícias Civil e Federal, que as milícias e o narcotráfico dominam e financiam suas atividades criminosas através do controle territorial da exploração de caça-níqueis, gatonet e outras atividades ilícitas.
A "Operação Furacão", deflagrada em 2007, e inúmeras outras que se seguiram, desvendaram a complexa rede de corrupção e violência que une o jogo ilegal a agentes de segurança, políticos e organizações criminosas. Permitir a instalação de milhares de máquinas "legalizadas" é ingênuo e perigoso. Na prática, o Estado está entregando a esses mesmos grupos criminosos um instrumento para lavar dinheiro e legitimar suas operações, seja através da coação de comerciantes para que operem as máquinas, seja pela criação de empresas de fachada para obter as licenças.
O resultado previsível é a intensificação das disputas territoriais, o aumento das taxas de extorsão, a corrupção de agentes públicos e, consequentemente, o aumento da violência letal. A liberdade da coletividade será a primeira vítima.
II.E - DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA
O ato administrativo, além de legal, deve ser moral. O artigo 37 da Constituição Federal eleva a moralidade a princípio basilar da Administração Pública. É manifestamente imoral que o Estado, cuja função precípua é garantir a segurança e o bem-estar social, edite um ato que, sabidamente, irá fomentar a criminalidade, a desordem social e a ludopatia (vício em jogo), uma grave questão de saúde pública.
A busca por arrecadação tributária não pode, em um Estado Democrático de Direito, servir de justificativa para a promoção de uma atividade penalmente ilícita e socialmente destrutiva. O interesse público primário – a segurança, a paz social, a saúde pública – está sendo sacrificado em nome de um interesse fiscal secundário e questionável. Tal ato administrativo, por ser patentemente contrário ao interesse público e à moralidade, é nulo.
III - DA IMPERIOSIDADE DA MEDIDA LIMINAR
A situação exige a mais urgente intervenção desta Suprema Corte. O fumus boni iuris está inequivocamente demonstrado pela densa argumentação que aponta a manifesta inconstitucionalidade e ilegalidade do decreto.
O periculum in mora é de uma evidência solar. A cada dia de vigência do ato coator, o Estado do Rio de Janeiro avança na implementação de uma política pública que servirá de catalisador para a violência. A demora na suspensão do decreto permitirá que o crime organizado se infiltre e se beneficie da nova estrutura "legal", tornando a reversão do quadro fático exponencialmente mais difícil e sangrenta. A liberdade da população fluminense não pode esperar.
IV - DOS PEDIDOS
Ante o exposto, com o máximo respeito, requer o Impetrante a Vossa Excelência:
- O deferimento da medida liminar, inaudita altera pars, com fundamento no art. 191, I, do RISTF, para determinar a imediata suspensão de todos os efeitos do Decreto Estadual nº [Número do Decreto, ex: 12.345/2025], publicado em 19/08/2025, proibindo o Governo do Estado do Rio de Janeiro e a LOTERJ de praticarem quaisquer atos administrativos ou materiais tendentes a implementar a exploração de VLTs e terminais de apostas, até o julgamento final do mérito deste writ;
- A notificação das autoridades coatoras para que prestem as informações que entenderem necessárias;
- A intimação da Douta Procuradoria-Geral da República para ofertar seu parecer;
- Ao final, no mérito, a concessão definitiva da ordem de Habeas Corpus Coletivo Preventivo, para, reconhecendo a inconstitucionalidade e ilegalidade do ato, cassar em definitivo o Decreto Estadual impugnado, como medida de justiça e de salvaguarda à liberdade de locomoção e à segurança de toda a coletividade do Estado do Rio de Janeiro.