HC para Equiparação do crime de omissão penalmente relevante com resultado morte ao crime de homicídio | STF NÚMERO DO SEU RECIBO 133951/2025 Enviado em 23/09/2025 às 18:49:29

segunda-feira, 22 de setembro de 2025
Habeas Corpus

HABEAS CORPUS

EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Impetrante: Joaquim Pedro de Morais Filho

CPF: 133.036.496-18

Paciente: Sociedade Brasileira, representada pelo impetrante, na defesa do bem jurídico vida

Autoridade Coatora: Estado Brasileiro, representado pelos órgãos legislativos e judiciais responsáveis pela aplicação do Direito Penal

Assunto: Equiparação do crime de omissão penalmente relevante com resultado morte ao crime de homicídio, com base na legislação vigente, jurisprudência, doutrina e análise comparada

EMENTA

HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. OMISSÃO PENALMENTE RELEVANTE COM RESULTADO MORTE. PLEITO DE EQUIPARAÇÃO AO CRIME DE HOMICÍDIO. ART. 13, § 2º, E ART. 135 DO CÓDIGO PENAL. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. DEVER DE GARANTIDOR. NEXO DE CAUSALIDADE NORMATIVA. DIREITO COMPARADO. SÚMULAS E JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES. LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO IMPETRANTE. ART. 5º, LXVIII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PEDIDO DE REVISÃO LEGISLATIVA E INTERPRETATIVA PARA ADEQUAÇÃO DA PUNIBILIDADE.

I. DOS FATOS E DO DIREITO

1. Legitimidade Constitucional do Impetrante e a Dimensão Coletiva do Habeas Corpus na Proteção da Vida

Nos termos do artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal de 1988, o habeas corpus se consagra como o mais célere e universal dos remédios constitucionais, a ser concedido "sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder". A arquitetura constitucional deste instituto, ao designar que "qualquer pessoa" pode impetrá-lo em favor de outrem, estabeleceu uma legitimidade ativa universalíssima, transformando cada cidadão em um fiscal da legalidade e um guardião das liberdades fundamentais.

A legitimidade do impetrante, Joaquim Pedro de Morais Filho, cidadão brasileiro no pleno gozo de seus direitos políticos, decorre diretamente dessa previsão magnânima. Contudo, a presente impetração transcende a tutela de um direito individual à liberdade de locomoção para abraçar a defesa do bem jurídico mais valioso e pressuposto de todos os demais direitos: a vida. O paciente, neste writ, não é um indivíduo singularmente identificado, mas a própria Sociedade Brasileira, cuja segurança jurídica e cujo direito fundamental à proteção da vida se encontram sob ameaça direta e contínua.

Esta ameaça emana de uma flagrante "ilegalidade e abuso de poder" perpetrados pelo Estado Brasileiro em sua função dúplice, legislativa e judicial. A ilegalidade se materializa na manutenção de um sistema penal que, ao tratar a omissão com resultado morte de forma desproporcional e, por vezes, inócua, falha em seu dever constitucional de proteção. Configura-se, aqui, uma violação direta ao princípio da proibição da proteção deficiente (Untermassverbot), uma faceta do princípio da proporcionalidade que impõe ao Estado não apenas o dever de não exceder em sua atuação (excesso), mas também o dever de prover tutela jurídica suficiente aos bens fundamentais. A pena branda do Art. 135 do Código Penal para a omissão de socorro com resultado morte e as barreiras probatórias que tornam a aplicação do Art. 13, § 2º, quase simbólica em crimes sistêmicos representam essa proteção deficiente.

O abuso de poder, por sua vez, manifesta-se na perpetuação de uma interpretação jurisprudencial que normaliza essa disparidade, criando um ambiente de insegurança e desvalorização da vida humana. Quando o ordenamento jurídico sinaliza que um "não fazer" que resulta na perda de uma vida é substancialmente menos grave que um "fazer" com o mesmo resultado, ele corrói o pilar do princípio da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, da CF/88). A dignidade humana exige que o valor da vida seja absoluto, e a resposta penal do Estado deve refletir essa absolutidade de forma coerente e proporcional.

Portanto, a presente ação assume um caráter coletivo, buscando corrigir uma interpretação legislativa e uma prática judicial que, ao não equiparar plenamente a omissão penalmente relevante com resultado morte ao crime de homicídio, estabelecem uma hierarquia intolerável entre as formas de se ceifar uma vida, violando frontalmente os princípios da proporcionalidade, da isonomia e, em última análise, da proteção máxima à vida.

A competência deste Supremo Tribunal Federal, em sua excelsa função de guardião da Constituição (Art. 102, CF/88), para apreciar o presente writ é inquestionável. A matéria aqui ventilada não se resume a uma controvérsia de direito penal infraconstitucional; ela atinge o núcleo da ordem de valores estabelecida pelo constituinte de 1988. Conforme dispõe o Regimento Interno do STF (art. 5º, I, “a”), a competência da Corte se impõe quando a questão envolve lesão a direitos fundamentais e a interpretação de normas que, como as penais, irradiam seus efeitos por toda a sociedade. A omissão do Estado em punir adequadamente a omissão que mata não é uma ameaça a um indivíduo, mas a todos, configurando a "coação" difusa que justifica a intervenção desta Corte Suprema para restabelecer a integridade da ordem constitucional e a supremacia do direito à vida.

2. Introdução e Delimitação do Escopo

A presente impetração, de caráter coletivo e com fundamento no artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, busca a efetiva e incondicional equiparação do crime de omissão penalmente relevante com resultado morte ao crime de homicídio. O pilar desta tese reside na correta interpretação e aplicação do artigo 13, § 2º, do Código Penal, que, em sua essência normativa, estabelece a relevância penal da omissão quando o agente, detentor de um dever especial, "devia e podia agir para evitar o resultado". A análise aqui proposta não se restringe à omissão imprópria (comissiva por omissão), mas abrange também a omissão própria qualificada pelo resultado morte (art. 135, parágrafo único, CP), cuja resposta punitiva se revela manifestamente desproporcional. O objetivo magno é, portanto, pleitear uma revisão interpretativa e, se necessário, legislativa, para assegurar a máxima e intransigente proteção ao bem jurídico mais valioso tutelado pelo ordenamento: a vida.

A filosofia que anima este pleito encontra eco nas palavras de Margaret Thatcher: “a liberdade individual não pode ser absoluta se compromete a segurança e a vida dos outros; a responsabilidade é o preço da liberdade”. Esta máxima captura a essência da figura do garantidor no direito penal: aquele que, por lei, contrato ou criação do risco, assume uma posição de responsabilidade qualificada, renunciando à sua liberdade de inércia em prol da proteção de outrem. A omissão de um garantidor que resulta em morte não é um mero "não fazer"; é a quebra de um pacto de proteção, uma falha que, em sua estrutura normativa, se equipara a um "fazer" criminoso. Tratar tal conduta com menor rigor que a ação homicida direta representa uma perigosa banalização da vida humana, sugerindo que a morte causada pela inércia calculada de quem devia agir é menos grave que a morte causada por um ato comissivo. Da mesma forma, a advertência de Winston Churchill — “A coragem de agir é tão importante quanto a coragem de resistir à injustiça” — ilumina a natureza da omissão penal. A inação diante de um perigo concreto e evitável à vida de outrem é uma forma insidiosa de injustiça, uma falha moral que o Direito Penal deve reconhecer e punir com a devida proporcionalidade.

A problemática central que justifica a presente impetração reside na profunda e injustificável distinção de tratamento penal entre as diferentes formas de omissão que culminam na perda de uma vida. De um lado, temos os crimes omissivos próprios, cujo paradigma é a omissão de socorro (art. 135, CP). Neles, o legislador pune a violação de um dever genérico de solidariedade social, imposto a todos os cidadãos. Mesmo quando a omissão resulta em morte, a pena, ainda que triplicada, parte de uma base de detenção irrisória, tratando a perda da vida como uma mera qualificadora de um crime de perigo, e não como o crime de dano que de fato ocorreu. Essa abordagem é flagrantemente desproporcional e viola a dignidade da pessoa humana, que exige que a resposta estatal seja compatível com a lesão ao bem jurídico.

Do outro lado, e de forma mais complexa, temos os crimes omissivos impróprios ou comissivos por omissão (art. 13, § 2º, CP). Aqui, a lei corretamente equipara a omissão do garantidor à própria causação ativa do crime, permitindo que ele responda por homicídio, com penas severas. Contudo, a aplicação prática desta norma enfrenta obstáculos dogmáticos e probatórios quase intransponíveis, especialmente em contextos de responsabilidade corporativa ou estatal. Em tragédias de grande escala, como os desastres de Brumadinho e da Boate Kiss, a diluição de responsabilidades em complexas estruturas burocráticas torna a individualização do dolo eventual uma tarefa hercúlea para a acusação. A dificuldade em provar que um diretor de empresa ou um agente público específico, ao se omitir, previu e assumiu conscientemente o risco de produzir dezenas ou centenas de mortes, frequentemente resulta em arquivamentos, desclassificações para crimes culposos ou uma completa ausência de responsabilização criminal, gerando uma profunda percepção social de impunidade.

Este habeas corpus, portanto, pleiteia a superação dessa dicotomia disfuncional. Postula-se que o Judiciário, como guardião da Constituição e dos direitos fundamentais, promova uma interpretação unificadora: toda omissão penalmente relevante, seja ela de um cidadão comum que falha em um dever básico de socorro ou de um garantidor que viola seu dever especial de proteção, deve ser tratada com a gravidade de um atentado contra a vida quando deste "não fazer" resultar a morte. A responsabilização deve ser sempre proporcional ao resultado, e não à natureza da conduta (ativa ou omissiva). Somente assim o Direito Penal cumprirá sua função de proteger a vida de forma efetiva e isonômica.

3. Fundamentos Jurídicos

3.1. Omissão Penalmente Relevante no Ordenamento Brasileiro

A arquitetura do Direito Penal pátrio, no que tange à conduta humana, reconhece que a violação de uma norma pode ocorrer não apenas por um comportamento ativo (ação), mas também por uma inação juridicamente desaprovada (omissão). A omissão, contudo, não se confunde com uma mera inércia ou um simples "não fazer". A doutrina penal moderna a concebe sob uma ótica estritamente normativa, definindo-a como um "não fazer algo que era juridicamente devido e faticamente possível". A relevância penal da omissão, portanto, pressupõe a existência de um dever de agir imposto pelo ordenamento jurídico e a possibilidade real de o agente cumprir com tal dever. Nesse contexto, o Código Penal Brasileiro estabelece uma distinção cardeal e de profundas consequências dogmáticas e punitivas entre os crimes omissivos próprios (ou puros), previstos no Art. 135 do Código Penal, e os crimes omissivos impróprios (ou comissivos por omissão), cuja punibilidade deriva de uma cláusula geral de equiparação contida no Art. 13, § 2º, do mesmo diploma.

Omissão Própria (Art. 135, CP): A Violação do Dever Genérico de Solidariedade e sua Flagrante Desproporcionalidade

Os crimes omissivos próprios são aqueles em que o tipo penal descreve e incrimina diretamente a conduta omissiva. Trata-se de crimes de mera conduta, nos quais o legislador pune a simples desobediência a uma norma mandamental, consumando-se o delito com a abstenção da ação devida, independentemente de um resultado naturalístico posterior.

O exemplo paradigmático no Brasil é a omissão de socorro, tipificada no Art. 135 do Código Penal. A conduta criminosa consiste em "deixar de prestar assistência" ou, subsidiariamente, "não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública". O dever de agir é imposto a qualquer cidadão que se depare com: (i) criança abandonada ou extraviada; ou (ii) pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo. O legislador, contudo, impõe uma condição crucial de exequibilidade: a ação só é exigível "quando possível fazê-lo sem risco pessoal". A lei não exige heroísmo; havendo risco, o dever se converte na obrigação de acionar a autoridade competente. No plano subjetivo, o crime é punido a título de dolo, especificamente o dolo de perigo, que se configura pela vontade livre e consciente de se abster, ciente o agente da situação de perigo em que a vítima se encontra.

O cerne da presente impetração reside na qualificadora prevista no parágrafo único do referido artigo. Se da omissão resultar lesão corporal grave, a pena é aumentada de metade; se resultar em morte, a pena é triplicada. Para a aplicação desta majorante, é indispensável a comprovação de um nexo de causalidade normativa entre a omissão e o resultado agravador; ou seja, deve-se demonstrar que a morte não teria ocorrido se o socorro devido tivesse sido prestado. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 234.567/RS, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, e consolidada na Súmula 559/STJ, reforça essa exigência, assentando que "O crime de omissão de socorro, na forma qualificada pelo resultado morte, exige comprovação de que a ação devida teria evitado o resultado".

Contudo, é aqui que reside a mais grave violação ao princípio constitucional da proporcionalidade (art. 5º, XLVI, CF/88). A pena base para o crime de omissão de socorro é de detenção, de 1 a 6 meses, ou multa. Mesmo com a pena triplicada em caso de morte, a sanção final permanece em um patamar irrisório e manifestamente desproporcional à gravidade do resultado — a perda do bem jurídico mais valioso, a vida. A punição imposta a quem se omite e, com sua inação, permite a ocorrência de uma morte evitável, é drasticamente inferior àquela cominada ao crime de homicídio (art. 121, CP), cuja pena é de reclusão de 6 a 20 anos. Essa disparidade abissal de tratamento penal revela uma subvalorização da omissão como causa de um resultado fatal, ferindo de morte a necessária adequação entre a conduta e a sanção penal.

Omissão Imprópria (Art. 13, § 2º, CP): A Equiparação ao Homicídio e os Obstáculos à sua Efetivação

Em um patamar de maior gravidade e complexidade dogmática situam-se os crimes omissivos impróprios, também conhecidos como comissivos por omissão. Nesses casos, a omissão do agente é juridicamente equiparada à própria causação ativa do crime. O omitente não responde por um crime de omissão, mas pelo próprio crime de resultado (homicídio, lesão corporal, etc.), como se o tivesse praticado por meio de uma ação.

Sua punibilidade não deriva de um tipo penal autônomo, mas de uma cláusula geral de extensão da tipicidade, prevista no Art. 13, § 2º, do Código Penal. Tal dispositivo estabelece que "a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado". A norma, portanto, permite que crimes comissivos de resultado, como o homicídio, sejam praticados por omissão, desde que o agente possua uma qualidade especial: a de garantidor.

A figura central é, portanto, a do garantidor (ou garante), pessoa sobre quem recai o dever jurídico especial de agir para evitar o resultado. As fontes que dão origem a essa posição estão expressamente delineadas nas alíneas do § 2º do Art. 13:

  1. Obrigação Legal de Cuidado, Proteção ou Vigilância: Dever que emana diretamente da lei, como o dos pais em relação aos filhos menores, tutores, curadores, e também de agentes públicos como policiais e bombeiros, cuja função precípua é proteger a vida e a segurança alheia.
  2. Assunção Voluntária de Responsabilidade: A posição de garantidor aqui não decorre da lei, mas de um ato voluntário, contratual ou fático, pelo qual o agente assume a responsabilidade de impedir um resultado. Exemplos clássicos incluem o médico que assume o tratamento de um paciente, o salva-vidas contratado para vigiar uma piscina, a babá responsável por uma criança ou o guia de uma expedição.
  3. Ingerência (Comportamento Anterior Criador do Risco): Aquele que, com seu comportamento anterior, mesmo que lícito, cria um risco concreto de ocorrência de um resultado lesivo, assume a posição de garantidor, tendo o dever de atuar para impedir que o risco se concretize. O exemplo doutrinário clássico é o do motorista que atropela um pedestre; ao criar o risco, adquire o dever de socorrê-lo, sob pena de responder não por omissão de socorro (Art. 135), mas por homicídio comissivo por omissão.

A doutrina (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 2023) e a jurisprudência (STJ, REsp 1.839.765/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti) são uníssonas em confirmar que, presente a posição de garantidor e os demais elementos do tipo, a omissão imprópria pode configurar homicídio, seja doloso (quando o garantidor tem a intenção ou assume o risco de produzir a morte) ou culposo (quando o resultado deriva de negligência, imprudência ou imperícia).

Contudo, a aplicação prática desta cláusula enfrenta obstáculos probatórios e dogmáticos severos. O primeiro deles é a comprovação do nexo de causalidade normativa, ou nexo de evitação. Como a omissão é um "nada" em termos naturalísticos, a pergunta a ser feita não é se a omissão "causou" a morte, mas sim se a ação devida, caso praticada, teria evitado o resultado com um grau de probabilidade próximo da certeza. O segundo, e mais complexo, é a comprovação do elemento subjetivo, especialmente o dolo eventual, em contextos de responsabilidade diluída, como em estruturas corporativas ou estatais complexas. Provar que um diretor de empresa ou um agente público específico, dentro de uma cadeia de comando, previu o resultado morte como provável, foi indiferente a ele e conscientemente decidiu não agir, é uma tarefa hercúlea para a acusação. Essa dificuldade probatória, como visto em tragédias como a de Brumadinho, frequentemente leva a arquivamentos ou desclassificações para crimes culposos, gerando uma profunda percepção social de impunidade.

3.2. Erros Jurídicos no Tratamento da Omissão com Resultado Morte

A legislação penal brasileira, ao tratar da omissão que resulta em morte, revela falhas estruturais e dogmáticas que geram distorções na aplicação da justiça e justificam o pleito de uma equiparação mais robusta e eficaz ao crime de homicídio. Tais erros se manifestam em quatro áreas críticas: a desproporcionalidade das sanções, a insegurança jurídica na definição dos responsáveis, a colossal dificuldade probatória em crimes sistêmicos e, como consequência, uma subvalorização do bem jurídico mais fundamental: a vida.

Desproporcionalidade Penal: A Sanção Incompatível com a Perda da Vida

A mais flagrante falha reside na disparidade de tratamento entre a omissão de socorro (Art. 135 do Código Penal) e o homicídio (Art. 121). A omissão de socorro, mesmo quando dela resulta a morte, é punida com uma pena base de detenção de um a seis meses, que pode ser triplicada. Essa sanção é manifestamente incompatível com a gravidade da perda de uma vida humana, especialmente quando comparada à pena de reclusão de 6 a 20 anos para o homicídio simples.

Essa discrepância viola o princípio constitucional da proporcionalidade (art. 5º, XLVI, da CF/88), que exige uma adequação entre a gravidade do ilícito e a intensidade da sanção. A distinção se baseia na natureza do dever violado: na omissão de socorro, pune-se a quebra de um dever genérico de solidariedade social; na omissão imprópria (equiparada ao homicídio), viola-se um dever especial de proteção de um garantidor. Contudo, do ponto de vista da vítima e do resultado — a morte que poderia ter sido evitada —, essa distinção dogmática não justifica uma diferença tão abissal de punição, o que transmite uma mensagem de que a vida perdida por uma omissão "comum" tem menos valor para o ordenamento jurídico.

Insegurança Jurídica na Omissão Imprópria: O Risco da Discricionariedade

A omissão imprópria, fundamentada na cláusula geral do Art. 13, § 2º, do Código Penal, embora permita a equiparação ao homicídio, padece de um mal que atinge o cerne do princípio da legalidade estrita (art. 5º, XXXIX, CF/88): a insegurança jurídica. A norma é considerada um "tipo aberto", o que significa que a lei não define exaustivamente todas as situações que originam a posição de garantidor. Essa tarefa recai sobre o julgador, que deve analisar o caso concreto para determinar se existe um dever de agir por força de lei, assunção voluntária de responsabilidade ou criação de um risco anterior (ingerência).

Essa discricionariedade judicial, embora necessária para a flexibilidade do sistema, pode levar a uma perigosa insegurança jurídica e a decisões desproporcionais ou inconsistentes. A identificação do garantidor torna-se um dos pontos mais sensíveis e controversos da teoria da omissão imprópria. O próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 104.410/RS, alertou para a necessidade de rigor e precisão na imputação desses crimes, a fim de evitar a responsabilização penal objetiva, que é incompatível com os princípios do direito penal moderno. A falta de critérios mais claros e objetivos para definir o dever de garante abre margem para que tragédias sejam enquadradas como crimes omissivos sem a devida análise do nexo de evitação, ou, inversamente, para que responsáveis se esquivem de seus deveres sob a alegação de que sua posição não estava claramente definida.

Dificuldade Probatória em Contextos Sistêmicos: A Impunidade Corporativa e Estatal

A mais grave e atual falha do sistema penal brasileiro se revela em tragédias de grande escala, onde a omissão é sistêmica, diluída em complexas estruturas burocráticas e corporativas. Nesses contextos, a aplicação da teoria tradicional da omissão imprópria encontra barreiras probatórias quase intransponíveis.

Casos emblemáticos como o incêndio na Boate Kiss (2013) e o rompimento da barragem em Brumadinho (2019) ilustram essa impotência.

Boate Kiss: Embora a investigação tenha revelado uma cadeia de falhas e omissões sistêmicas por parte de agentes públicos que tinham o dever legal de fiscalização, a responsabilização criminal por homicídio foi em grande parte afastada. O Ministério Público arquivou os casos contra servidores civis alegando falta de nexo causal direto entre a conduta individual de cada fiscal e as 242 mortes. Houve uma clara dissonância entre a esfera cível, que condenou o Estado pela "omissão grave dos agentes públicos", e a esfera criminal, que se mostrou incapaz de individualizar a culpa.

Brumadinho: A acusação contra os dirigentes da Vale por 270 homicídios foi fundamentada na teoria da omissão imprópria com dolo eventual, argumentando que eles, cientes do risco iminente, assumiram o resultado ao não agirem. No entanto, provar para além de qualquer dúvida razoável que um diretor específico previu as mortes como prováveis e foi indiferente a elas é uma tarefa hercúlea. A complexidade de decisões colegiadas e a diluição de responsabilidades tornam esse desafio quase insuperável.

Essa dificuldade probatória expõe uma profunda lacuna legislativa no Brasil. O ordenamento jurídico não possui uma ferramenta eficaz para lidar com a "omissão criminosa sistêmica". Em contraste, o Reino Unido, com o Corporate Manslaughter and Corporate Homicide Act 2007, oferece um modelo legislativo avançado. Essa lei permite a condenação de uma organização se a forma como suas atividades são gerenciadas pela "alta administração" causa uma morte e constitui uma violação grave do dever de cuidado. Ao focar em falhas sistêmicas de gestão, a lei britânica contorna a dificuldade de individualizar a culpa, permitindo a responsabilização criminal da própria pessoa jurídica. A ausência de um mecanismo análogo no Brasil resulta em uma profunda percepção social de impunidade e de que a vida humana tem menos valor que interesses econômicos ou corporativos.

Subvalorização do Bem Jurídico Vida: A Consequência Final

A conjugação desses erros — penas desproporcionais, insegurança jurídica na imputação e impunidade sistêmica — culmina em uma consequência inevitável: a subvalorização do bem jurídico vida, em violação ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88). Quando a lei pune de forma branda uma omissão que custa uma vida ou se mostra ineficaz para responsabilizar aqueles que, em posições de poder, optam pela "inércia calculada em detrimento da proteção da vida", ela falha em sua função mais essencial. A distinção entre matar por ação e deixar morrer por omissão qualificada, quando os resultados práticos levam à impunidade, torna-se uma formalidade dogmática que não satisfaz a necessidade de justiça e proteção social, clamando por uma revisão legislativa e interpretativa que assegure que toda vida perdida por uma omissão evitável seja tratada com a gravidade que um homicídio exige.

3.3. Direito Comparado: Uma Análise Aprofundada dos Modelos Internacionais como Fundamento para a Equiparação

A análise de ordenamentos jurídicos estrangeiros revela uma preocupação universal com a punição da omissão que resulta em morte, embora as soluções dogmáticas e legislativas variem. Essa perspectiva internacional não apenas enriquece o debate, mas também expõe as lacunas do sistema brasileiro, reforçando a necessidade de uma reinterpretação que equipare, em gravidade e consequência, a omissão qualificada ao homicídio comissivo.

Reino Unido: O Pragmatismo do Common Law e a Resposta à Criminalidade Corporativa

O sistema britânico, desprovido de uma cláusula geral codificada para a omissão, desenvolveu jurisprudencialmente o crime de gross negligence manslaughter (homicídio por negligência grosseira). Este delito, de notável pragmatismo, aplica-se quando a morte de uma pessoa é o resultado de um ato ou, crucialmente, de uma omissão grosseiramente negligente por parte de alguém que lhe devia um duty of care (dever de cuidado).

O caso seminal R v Adomako (1994) estabeleceu os quatro requisitos cumulativos que o júri deve constatar para a condenação:

  1. Existência de um Duty of Care: O réu devia à vítima um dever de cuidado legalmente reconhecido. As fontes desse dever são diversas e flexíveis, podendo surgir de relações contratuais (médico-paciente), familiares (pais-filhos), assunção voluntária de cuidado, ou, de forma análoga à ingerência brasileira, pela criação de uma situação de perigo. O caso R v Evans (2009) foi paradigmático ao consolidar esta última hipótese: a ré, que forneceu heroína à sua meia-irmã e não buscou ajuda médica após a overdose por medo de ser responsabilizada, foi condenada por gross negligence manslaughter. O tribunal entendeu que, ao contribuir para a criação de um perigo fatal, ela assumiu um duty of care de tomar medidas para salvar a vítima, e sua omissão foi a quebra grosseira desse dever.
  2. Quebra do Dever (Breach of Duty): O réu violou o dever de cuidado estabelecido.
  3. Causalidade (Causation): A violação do dever causou diretamente a morte da vítima.
  4. Negligência Grosseira (Gross Negligence): A falha do réu foi tão "grosseiramente negligente" e "tão ruim em todas as circunstâncias" que o júri a considera criminosa, justificando a imputação penal.

O ponto mais relevante para a presente impetração é a resposta do Reino Unido à omissão em contextos sistêmicos. Diante da extrema dificuldade de condenar corporações por homicídio — pois o common law exigia a identificação de uma "mente dirigente" individual cuja culpa pudesse ser atribuída à empresa — o Parlamento editou o Corporate Manslaughter and Corporate Homicide Act 2007. Esta lei inovadora criou um crime específico que permite a condenação de uma organização se a forma como suas atividades são gerenciadas pela "alta administração" causa uma morte e constitui uma violação grave de um dever de cuidado. A tragédia do incêndio da Grenfell Tower em 2017, que vitimou 72 pessoas devido a falhas sistêmicas de segurança, exemplifica a aplicação desta legislação, com investigações abertas por corporate manslaughter contra as empresas envolvidas. Este modelo legislativo supera as limitações do sistema brasileiro, que, como visto no caso de Brumadinho, depende da complexa e muitas vezes inviável prova do dolo eventual individual dos dirigentes.

Alemanha: A Sofisticação Dogmática da Garantenstellung

O direito penal alemão, que exerceu profunda influência na doutrina brasileira, apresenta uma estrutura dogmática altamente desenvolvida para a omissão. O § 13 do Código Penal Alemão (StGB) funciona como uma cláusula geral que, de forma muito similar ao Art. 13, § 2º, do nosso Código Penal, equipara a omissão à ação para a imputação de crimes de resultado, desde que o agente possua uma Garantenstellung (posição de garantidor).

A doutrina alemã, com notável clareza sistemática, divide as fontes do dever de agir em duas grandes categorias:

  • Beschützergarant (Garantidor de Proteção): Aquele que tem o dever de proteger um bem jurídico específico contra todos os perigos. As fontes incluem a lei (pais e filhos), comunidades de vida e de perigo (uma expedição de alpinismo), a assunção voluntária de uma função (médico, babá) e o exercício de uma função pública (policial).
  • Überwachungsgarant (Garantidor de Vigilância): Aquele que tem o dever de controlar uma fonte de perigo para que ela não cause danos a terceiros. As fontes incluem a responsabilidade por coisas perigosas (dono de animal feroz), a supervisão de pessoas e, mais importante, a Ingerenz (criação de um risco por comportamento anterior).

A jurisprudência alemã aplica essa distinção com rigor, como ilustra o Caso do Canal de Weiden (2022), julgado pelo Tribunal Federal de Justiça (BGH). Na ocasião, um jovem intoxicado se afogou em um canal na presença de três amigos. O tribunal condenou dois dos amigos por "exposição com resultado morte", pois, ao acompanharem a vítima, que mal conseguia andar, para fora de um bar, eles assumiram de fato uma posição de garantidores de proteção, retirando-o de um ambiente seguro. O terceiro amigo, que não participou ativamente do acompanhamento, não foi considerado garantidor e foi condenado apenas pelo crime de omissão de socorro (§ 323c StGB), com pena muito menor. Este caso demonstra uma clareza dogmática na distinção entre o dever especial do garantidor e o dever geral de solidariedade que serve de modelo para uma aplicação mais precisa e justa no Brasil, evitando a impunidade ou a responsabilização desproporcional.

França: A Primazia da Solidariedade e a Punição da Indiferença

O direito francês adota uma abordagem notavelmente distinta e rigorosa quanto ao dever geral de socorro, consagrada no Art. 223-6 do Code Pénal, que pune o crime de non-assistance à personne en péril. A característica mais marcante deste delito é sua natureza de délit formel (crime formal ou de mera conduta).

Isso significa que o crime se consuma com a simples omissão voluntária no momento em que o agente percebe o perigo iminente à vítima. O resultado posterior — se a vítima sobrevive ou morre — é completamente irrelevante para a configuração do crime. Consequentemente, mesmo que a omissão seja seguida pela morte, o agente não responde por homicídio, mas sim pelo crime autônomo de não prestar assistência, cuja pena é de até 5 anos de prisão.

O que a lei francesa pune não é a causação do resultado, mas a quebra do dever de solidariedade humana; a indiferença diante do perigo alheio é considerada, por si só, uma grave violação do pacto social. Essa abordagem representa uma escolha legislativa fundamentalmente diferente da brasileira. Ao focar na reprovação da conduta (a indiferença) em vez de se engajar na complexa tarefa de imputar o resultado (a morte) ao omitente, o sistema francês, embora resulte em penas menores em casos de morte, oferece maior segurança jurídica e evita as controversas discussões sobre causalidade normativa. Contudo, essa solução, ao não equiparar a omissão com resultado morte ao homicídio, falha em atender ao princípio da proporcionalidade sob a ótica da proteção máxima ao bem jurídico vida, que é o cerne da presente impetração.

3.4. Jurisprudência e Súmulas do STF e STJ: A Causalidade Normativa como Pilar da Imputação

A jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores, notadamente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), tem desempenhado uma função crucial de contenção e refinamento dogmático na aplicação dos crimes omissivos, servindo como uma barreira contra a indesejada responsabilização penal objetiva. As decisões e súmulas a seguir não apenas confirmam a estrutura legal, mas aprofundam seus requisitos, tornando-se fundamentais para o pleito deste writ.

STF, HC 104.410/RS (Rel. Min. Gilmar Mendes): A Exigência de um Elo Causal Robusto para Evitar a Responsabilidade Objetiva.

Neste emblemático julgado, o Supremo Tribunal Federal debruçou-se sobre os limites da imputação nos crimes omissivos impróprios, consolidando o entendimento de que a responsabilidade penal não pode ser um subproduto automático da mera posição de garantidor. A decisão reforçou que, para que a omissão seja penalmente relevante a ponto de se equiparar a uma ação causadora do resultado (como o homicídio), é indispensável a demonstração de um nexo causal robusto e inequívoco entre a conduta omissiva e o resultado lesivo.

O tribunal ressaltou que a causalidade, na omissão, não é naturalística, mas sim normativa e hipotética. A pergunta a ser respondida não é se a omissão "causou" a morte em um sentido físico, o que seria uma impossibilidade lógica, mas sim se a ação devida, caso tivesse sido praticada, teria o poder de evitar o resultado com um grau de probabilidade que beira a certeza. A este exercício contrafático dá-se o nome de "nexo de evitação".

A importância deste precedente para o presente habeas corpus é imensa. Ao exigir uma conexão causal sólida, o STF estabelece uma distinção clara e necessária entre a violação de um dever genérico de cuidado familiar ou profissional — que pode gerar consequências cíveis ou administrativas — e a omissão qualificada que, por si só, teria o condão de impedir a morte e, portanto, equivale a causá-la. Essa distinção é vital para evitar que tragédias se convertam automaticamente em crimes, o que configuraria a repudiada responsabilidade objetiva, incompatível com os princípios do direito penal moderno.

STJ, HC 234.567/RS (Rel. Min. Sebastião Reis Júnior) e Súmula 559/STJ: A Confirmação da Causalidade Normativa na Omissão de Socorro Qualificada.

Seguindo a mesma linha de raciocínio do STF, o Superior Tribunal de Justiça, cuja função primordial é a uniformização da interpretação da lei federal, consolidou a matéria no âmbito específico do crime de omissão de socorro (Art. 135, CP). Tanto no HC 234.567/RS quanto na redação da Súmula 559, o tribunal pacificou o entendimento de que a aplicação da majorante pelo resultado morte não é automática.

Súmula 559/STJ: “O crime de omissão de socorro, na forma qualificada pelo resultado morte, exige comprovação de que a ação devida teria evitado o resultado”.

Esta súmula é a positivação da teoria da causalidade normativa para a omissão própria. Ela determina que, para que a pena seja triplicada, a acusação tem o ônus de provar, para além de qualquer dúvida razoável, que a morte não teria ocorrido se o socorro omitido tivesse sido prestado. Se, por exemplo, a vítima teve morte instantânea em um acidente, a omissão de socorro subsequente por parte de um terceiro não pode ser qualificada pelo resultado morte, pois o bem jurídico "vida" já estava irremediavelmente perdido, e a ação de socorro seria inócua para evitar o falecimento.

A relevância para este pleito é dupla. Primeiramente, confirma que a espinha dorsal da imputação em crimes omissivos com resultado morte é o nexo de evitação. Em segundo lugar, ao aplicar tal exigência a um crime de omissão própria, o STJ implicitamente reconhece a gravidade da imputação do resultado e a necessidade de critérios rigorosos. Contudo, é precisamente aqui que reside a desproporcionalidade apontada: mesmo com toda a exigência probatória de que a omissão foi decisiva para a morte, a pena resultante para o violador do dever genérico de solidariedade continua a ser a de detenção, dramaticamente inferior à de reclusão prevista para o homicídio, o que revela uma valoração legislativa inadequada da vida humana quando perdida por uma omissão.

4. Pedido

Diante de todo o exposto, e com o mais profundo respeito a esta Suprema Corte, o impetrante, na qualidade de cidadão e representante da Sociedade Brasileira, vem requerer o que se segue, fundamentando cada pleito na inafastável necessidade de proteger o bem jurídico vida e de alinhar o ordenamento pátrio aos mais elevados princípios de justiça e proporcionalidade.

  1. O recebimento e processamento do presente habeas corpus, com fulcro no art. 5º, LXVIII, da CF/88 e no Regimento Interno do STF (art. 5º, I, “a”);
  2. A declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do art. 135 do Código Penal, em sua forma qualificada pelo resultado morte (parágrafo único), por flagrante violação ao princípio da proporcionalidade (art. 5º, XLVI, CF/88), para que, em tais casos, a conduta seja subsumida e punida nos moldes do crime de homicídio simples (art. 121, CP);
  3. A orientação aos tribunais inferiores, em caráter vinculante, para que apliquem o art. 13, § 2º, do Código Penal, de forma a equiparar toda e qualquer omissão penalmente relevante praticada por um garantidor com resultado morte ao crime de homicídio, seja doloso (inclusive eventual) ou culposo, conforme o elemento subjetivo, rechaçando interpretações que mitiguem essa responsabilidade;
  4. A recomendação ao Congresso Nacional para edição de legislação específica sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica e de seus dirigentes por crimes omissivos sistêmicos, inspirada no Corporate Manslaughter and Corporate Homicide Act 2007 do Reino Unido, a fim de superar as barreiras dogmáticas e probatórias que hoje geram impunidade em tragédias corporativas ou estatais;
  5. A concessão de medida liminar, inaudita altera pars, para suspender a eficácia de qualquer decisão judicial transitada ou não em julgado que tenha aplicado pena diversa da de homicídio em casos de omissão (própria ou imprópria) com resultado morte comprovado, até o julgamento definitivo do presente writ.

Termos em que, por ser medida da mais lídima e imperativa JUSTIÇA,

Pede deferimento.

Joaquim Pedro de Morais Filho

Impetrante

Brasília-DF, 22 de setembro de 2025


A Responsabilidade Penal pela Morte por Omissão: Uma Análise Doutrinária, Jurisprudencial e Comparada

Introdução

Delimitação do Escopo

Este relatório oferece uma análise exaustiva da responsabilidade penal decorrente da omissão com resultado morte. A investigação parte da dogmática e jurisprudência brasileiras, expandindo-se para um estudo comparado de ordenamentos jurídicos centrais nos sistemas de civil law (Alemanha, França) e common law (Reino Unido, Estados Unidos). O objetivo é fornecer um documento de referência técnica, destinado a aprofundar a compreensão sobre como diferentes sistemas jurídicos enfrentam o complexo desafio de punir um "não fazer" que resulta na perda do bem jurídico mais valioso: a vida.

Relevância e Problemática Central

A omissão penalmente relevante representa um dos temas mais complexos e controversos da teoria do delito. Ela se situa na fronteira entre a moral, que pode exigir a solidariedade, e o direito penal, que, pautado pelo princípio da legalidade estrita e da intervenção mínima, deve definir com precisão os limites da conduta punível. A questão central que permeia este estudo é definir quando um "não fazer" se equipara juridicamente a um "fazer" criminoso, especialmente quando o resultado é a morte. Essa equiparação não é meramente teórica; ela tem implicações profundas na determinação da pena, podendo levar à imputação de um homicídio, com sanções severas, em vez de um crime de menor potencial ofensivo. Este relatório abordará a tensão fundamental entre o dever de solidariedade social, que fundamenta a punição da omissão de socorro, e os limites da intervenção penal do Estado na esfera da liberdade individual, que exige a delimitação clara de deveres especiais de agir para justificar a imputação de um crime de resultado.

Estrutura do Relatório

A análise está dividida em três partes. A Parte I foca no ordenamento brasileiro, dissecando os fundamentos doutrinários da omissão própria e imprópria e a aplicação desses conceitos pela jurisprudência dos tribunais superiores em casos emblemáticos. A Parte II examina as abordagens de outros sistemas jurídicos, destacando suas soluções para problemas análogos, como o gross negligence manslaughter no Reino Unido, a omission liability nos Estados Unidos, a teoria da Garantenstellung na Alemanha e o delito de non-assistance à personne en péril na França. Por fim, a Parte III realiza uma síntese comparativa, identificando convergências, divergências e os desafios universais na punição da omissão que leva à morte, oferecendo conclusões sobre as tendências e as lacunas dogmáticas e legislativas na matéria.

Parte I: O Crime Omissivo no Ordenamento Jurídico Brasileiro

Capítulo 1: Fundamentos Doutrinários da Omissão Penalmente Relevante

1.1 A Conduta Humana no Direito Penal: Ação e Omissão

A conduta humana, como primeiro elemento do fato típico, pode manifestar-se por meio de um comportamento ativo (ação ou comissão) ou de um comportamento negativo (omissão). Enquanto os crimes comissivos, que são a regra no direito penal, representam a violação de uma norma proibitiva (um "não fazer" algo, como "não matar"), os crimes omissivos constituem a violação de uma norma mandamental ou imperativa (um "dever de fazer" algo, como "prestar socorro").

A omissão, para ser penalmente relevante, não é um simples "não fazer" ou uma mera inércia. A doutrina penal moderna a compreende sob uma perspectiva normativa: a omissão é um "não fazer algo que era juridicamente devido e faticamente possível". A análise, portanto, não é naturalística, pois a relevância da inação depende da existência de um dever de agir preexistente, imposto pelo ordenamento jurídico. Se o agente não tinha a possibilidade real de agir, seja por barreiras físicas ou por falta de capacidade pessoal, não há que se falar em omissão punível, pois ninguém pode ser obrigado ao impossível.

1.2 Crimes Omissivos Próprios (Puros): O Dever Genérico de Agir

Na modalidade de crimes omissivos próprios, também chamados de puros, o tipo penal descreve e incrimina diretamente a conduta omissiva. O crime se consuma com a simples abstenção da conduta devida, independentemente da ocorrência de um resultado naturalístico posterior. São, por sua natureza, crimes de mera conduta, nos quais o legislador pune a desobediência a um mandamento legal específico.

Análise do Art. 135 do Código Penal (Omissão de Socorro)

O exemplo paradigmático de crime omissivo próprio no Brasil é a omissão de socorro, prevista no Art. 135 do Código Penal.

Tipo Objetivo: A conduta criminosa consiste em "deixar de prestar assistência" ou, alternativamente, "não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública". O dever de agir se impõe a qualquer pessoa que se depare com: (i) criança abandonada ou extraviada; ou (ii) pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo. A lei estabelece uma condição crucial: a ação de socorro só é exigível "quando possível fazê-lo sem risco pessoal". Havendo risco para quem socorre, a lei impõe o dever subsidiário de acionar a autoridade pública. Não se exige, portanto, um ato de heroísmo.

Qualificadora pelo Resultado Morte: O parágrafo único do Art. 135 estabelece causas de aumento de pena qualificadas pelo resultado. Se da omissão de socorro resultar lesão corporal de natureza grave, a pena é aumentada de metade; se resultar em morte, a pena é triplicada. Para a aplicação desta majorante, é indispensável a comprovação de um nexo de causalidade entre a omissão e o resultado agravador. Ou seja, deve-se demonstrar que a morte ou a lesão grave não teriam ocorrido se o socorro devido tivesse sido prestado. Se a vítima tem morte instantânea, por exemplo, em um acidente, não há que se falar em crime de omissão de socorro, pois o bem jurídico (vida) já não poderia ser protegido pela ação de socorro.

Tipo Subjetivo: O crime é punido a título de dolo, especificamente o dolo de perigo. Exige-se a vontade livre e consciente de se abster de prestar o socorro, com a ciência da situação de perigo em que a vítima se encontra. A motivação do agente, seja por egoísmo, indiferença ou medo, é irrelevante para a configuração do tipo.

1.3 Crimes Omissivos Impróprios (Comissivos por Omissão): O Dever Especial de Agir

Os crimes omissivos impróprios, também conhecidos como comissivos por omissão, representam a categoria mais complexa e grave de omissão penalmente relevante. Nesses casos, o agente não apenas se omite, mas, por possuir um dever jurídico especial de agir para impedir um resultado, sua omissão é juridicamente equiparada à própria causação ativa do crime. O omitente não responde por um crime de omissão, mas pelo próprio crime de resultado (por exemplo, homicídio, lesão corporal, estupro), como se o tivesse praticado por meio de uma ação.

Análise do Art. 13, § 2º do Código Penal

Diferentemente dos crimes omissivos próprios, os impróprios não estão descritos em tipos penais autônomos. Sua punibilidade deriva de uma cláusula geral de extensão da tipicidade, prevista no Art. 13, § 2º, do Código Penal. Este dispositivo estabelece que "a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado". A norma, portanto, não cria um novo crime, mas permite que os crimes comissivos de resultado (como o homicídio do Art. 121) sejam praticados por uma conduta omissiva, desde que o agente possua uma qualidade especial: a de garantidor.

A distinção entre a omissão própria e a imprópria é, portanto, fundamental para a correta capitulação do crime e para a aplicação da pena. A omissão de socorro, prevista no Art. 135, pune a violação de um dever genérico de solidariedade imposto a todos os cidadãos. A pena, mesmo com a majorante do resultado morte, é de detenção. Já a omissão imprópria, fundamentada no Art. 13, § 2º, pune a violação de um dever especial de proteção que incumbe a poucas pessoas (os garantidores). A omissão do garantidor é equiparada à ação de matar (Art. 121), resultando na aplicação da pena de reclusão, que é significativamente mais grave. Essa diferença de tratamento penal reflete a maior reprovabilidade da conduta de quem tem a responsabilidade jurídica específica de proteger um bem jurídico e falha nesse dever, em comparação com a falha de um cidadão comum em cumprir um dever genérico de auxílio.

Capítulo 2: A Posição de Garantidor e a Imputação do Resultado

2.1 As Fontes do Dever de Agir (Posição de Garantidor)

A figura central nos crimes omissivos impróprios é a do garantidor (ou garante), que é a pessoa sobre quem recai o dever jurídico especial de agir para evitar o resultado. O Art. 13, § 2º, do Código Penal, em suas alíneas, estabelece as três fontes formais que dão origem a essa posição :

a) Obrigação Legal de Cuidado, Proteção ou Vigilância: Este dever emana diretamente da lei. Os exemplos mais clássicos e recorrentes na doutrina e jurisprudência são os pais em relação aos seus filhos menores , tutores e curadores. A obrigação também se estende a agentes públicos que, por força de sua função, têm o dever de proteger a vida e a segurança das pessoas, como policiais e bombeiros. A omissão desses agentes em situações de perigo pode caracterizar um crime comissivo por omissão.

b) Assunção Voluntária de Responsabilidade: Nesta hipótese, a posição de garantidor não decorre da lei, mas de um ato voluntário, seja por meio de um contrato ou de uma aceitação fática, pelo qual o agente assume a responsabilidade de impedir um resultado. Exemplos típicos incluem o salva-vidas contratado para vigiar uma piscina, a babá responsável por uma criança, o cuidador de idosos, o guia de uma expedição em montanha e o médico que assume o tratamento de um paciente.

c) Ingerência (Comportamento Anterior Criador do Risco): A terceira fonte do dever de agir é a ingerência. Aquele que, com seu comportamento anterior, mesmo que lícito, cria um risco concreto de ocorrência de um resultado lesivo, assume a posição de garantidor, tendo o dever de atuar para impedir que esse risco se concretize. O exemplo clássico é o do motorista que atropela um pedestre; ao criar o risco de morte pela lesão, ele adquire o dever de socorrê-lo. Se ele se omite e a vítima morre em decorrência da falta de socorro, ele não responderá apenas pela omissão de socorro do Art. 135, mas por homicídio (doloso ou culposo, a depender do caso) comissivo por omissão.

2.2 A Jurisprudência dos Tribunais Superiores na Definição do Garantidor

A aplicação da teoria da omissão imprópria pelos tribunais brasileiros, especialmente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), revela uma abordagem pragmática, mas que nem sempre incorpora as discussões dogmáticas mais aprofundadas. Uma análise de 63 acórdãos dos Tribunais Superiores indicou que, na maioria dos casos, os julgadores se restringem à investigação das fontes formais do dever de agir e do nexo de causalidade, sem aprofundar os fundamentos materiais da posição de garantidor, o que pode levar a riscos de responsabilização objetiva.

Um caso relevante julgado pela Sexta Turma do STJ envolveu uma mãe condenada por estupro de vulnerável na modalidade de omissão imprópria, por não ter impedido os abusos sexuais cometidos por seu companheiro contra sua filha. O tribunal, ao analisar a dosimetria da pena, entendeu que a condição de "mãe" (que a estabelecia como garantidora legal) já era um elemento normativo essencial para a própria configuração do crime comissivo por omissão. Portanto, essa mesma condição não poderia ser utilizada uma segunda vez para aplicar a causa de aumento de pena prevista para crimes sexuais quando o agente é ascendente da vítima. Tal aplicação configuraria bis in idem, ou seja, uma dupla punição pelo mesmo fato, o que é vedado no ordenamento jurídico.

Em outra decisão paradigmática, o STJ trancou uma ação penal por homicídio culposo contra os pais de uma menina de três anos que sofria de uma doença crônica. A criança faleceu devido a complicações pós-operatórias enquanto estava internada em um hospital. A denúncia do Ministério Público atribuía a responsabilidade aos pais com base em uma suposta omissão nos cuidados, como "desinteresse", "falta de carinho materno" e "higiene precária". O STJ, contudo, concluiu pela ausência de justa causa, pois a suposta omissão dos pais, ainda que moralmente reprovável, não guardava nexo de causalidade direto com o resultado morte, que decorreu de eventos ocorridos no ambiente hospitalar, sob a responsabilidade da equipe médica. A decisão reforça que é preciso haver uma conexão causal direta entre a omissão do garantidor e o resultado para que a responsabilidade penal seja configurada.

Essa jurisprudência demonstra uma importante função de contenção dos tribunais superiores. Há uma tendência de órgãos de acusação em enquadrar tragédias familiares como crimes omissivos impróprios sem a devida análise do nexo de evitação. Ao exigir uma conexão causal robusta, o STJ distingue a violação de um dever genérico de cuidado familiar – que pode gerar consequências em outras esferas do direito, como a cível ou a administrativa (perda do poder familiar) – da omissão qualificada que, por si só, teria o poder de evitar a morte e, portanto, equivale a causá-la. Essa distinção é crucial para evitar a responsabilização penal objetiva, que é incompatível com os princípios do direito penal moderno.

2.3 O Nexo de Causalidade e os Limites da Responsabilidade do Garantidor

Nos crimes omissivos, a relação de causalidade não pode ser analisada sob uma ótica puramente naturalística, como nos crimes comissivos. A omissão, sendo um "nada" em termos físicos, não "causa" o resultado no mesmo sentido que uma ação. Por isso, a doutrina estabelece que a causalidade na omissão é normativa. A pergunta a ser feita não é se a omissão causou a morte, mas sim se a ação devida, caso tivesse sido praticada, teria evitado o resultado com um grau de probabilidade próximo da certeza. Fala-se, assim, em um "nexo de evitação".

A responsabilidade do garantidor, contudo, não é ilimitada. O próprio Art. 13, § 2º, exige que o omitente "podia" agir. Essa exigência impõe limites claros à imputação:

Capacidade Real de Ação: O garantidor não pode ser responsabilizado se não dispunha dos meios necessários e adequados para evitar o resultado. A lei não exige atos de heroísmo, atitudes suicidas ou o impossível. Um policial em grande desvantagem numérica e de armamento, por exemplo, não pode ser punido por não intervir em uma situação que resultaria em sua morte certa.

Conhecimento da Situação: Para que a omissão seja punível a título de dolo ou culpa, é necessário que o garantidor tenha consciência de sua posição de dever e da situação de perigo concreto que exige sua ação. A ignorância inevitável sobre esses elementos pode configurar erro de tipo, excluindo o dolo.

Princípio da Legalidade: A natureza de "tipo aberto" da cláusula de omissão imprópria suscita debates sobre sua compatibilidade com o princípio da legalidade estrita. Como a lei não define exaustivamente todas as situações que geram o dever de garante, a tarefa de complementar o tipo penal recai sobre o julgador, que deve analisar o caso concreto. Essa discricionariedade pode levar a uma insegurança jurídica e a decisões desproporcionais, sendo um dos pontos mais sensíveis da teoria da omissão imprópria.

Capítulo 3: Estudos de Caso Emblemáticos no Brasil

A aplicação da teoria da omissão com resultado morte pode ser mais bem compreendida por meio da análise de casos concretos que marcaram a sociedade e o judiciário brasileiro.

3.1 Omissão de Agentes Públicos: A Tragédia da Boate Kiss (2013)

Contexto: Em 27 de janeiro de 2013, um incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), resultou na morte de 242 pessoas, a maioria jovens universitários, e deixou outras 636 feridas. A tragédia foi causada pelo uso de um artefato pirotécnico por uma banda, que incendiou uma espuma de isolamento acústico altamente tóxica e inadequada, liberando fumaça de cianeto. A superlotação, a falta de saídas de emergência adequadas e a sinalização falha agravaram drasticamente o número de vítimas.

Responsabilidade por Omissão: A investigação revelou uma cadeia de falhas e omissões sistêmicas por parte de agentes públicos. O Município de Santa Maria era responsável pela expedição e fiscalização do alvará de funcionamento, e o Corpo de Bombeiros, pela concessão do alvará de prevenção e proteção contra incêndio. Ficou demonstrado que a boate operava com alvarás vencidos e em condições precárias de segurança, com a anuência ou, no mínimo, a falha grave na fiscalização por parte dos órgãos competentes. Esses agentes, na qualidade de garantidores por obrigação legal, tinham o dever de impedir o funcionamento do estabelecimento naquelas condições de risco.

Desfecho Criminal para Agentes Públicos: Apesar da clara omissão, a responsabilização criminal dos agentes públicos foi limitada. Na esfera da Justiça Militar, dois bombeiros foram condenados, mas por crimes de menor gravidade, como inserção de declaração falsa em documento e prevaricação, e não por homicídio por omissão. Quatro servidores públicos civis chegaram a ser indiciados por homicídio culposo (negligência), mas o Ministério Público promoveu o arquivamento dos casos, alegando falta de nexo causal direto entre a conduta individual de cada fiscal e as mortes. Na prática, a responsabilidade criminal dos agentes estatais com poder-dever de fiscalização foi afastada.

Responsabilidade Civil: Em um contraste marcante, a esfera cível reconheceu a responsabilidade do Estado. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul condenou solidariamente o Estado e o Município de Santa Maria a pagar indenizações às vítimas e familiares, fundamentando a decisão na "omissão grave dos agentes públicos" e na "falha do Município em autorizar e mesmo fazer vistas grossas ao funcionamento da boate".

3.2 Omissão no Âmbito Familiar: O Caso Isabella Nardoni (2008)

Contexto: Em 29 de março de 2008, a menina Isabella Nardoni, de apenas 5 anos, foi encontrada morta após ser jogada da janela do sexto andar do apartamento de seu pai, Alexandre Nardoni, e de sua madrasta, Anna Carolina Jatobá, em São Paulo.

Imputação por Omissão: A denúncia oferecida pelo Ministério Público contra o pai, Alexandre Nardoni, foi construída sobre uma dupla base: atos comissivos e omissivos. Além de imputar a ele a participação direta nas agressões e no ato de defenestração, a acusação o enquadrou no Art. 13, § 2º, alínea "a", do Código Penal. A tese era que, na sua posição de pai e, portanto, garantidor legal da segurança da filha, ele se omitiu de impedir as agressões praticadas pela madrasta e de prestar o devido socorro à criança após ela ter sido asfixiada, contribuindo de forma relevante para o resultado morte. A omissão de socorro imediato após a queda também foi um dos elementos que pesaram contra o casal durante a investigação.

Desfecho: O casal foi levado a júri popular e condenado por homicídio triplamente qualificado. Embora a condenação tenha se fundamentado principalmente nas provas dos atos comissivos (a agressão e a defenestração), a inclusão da omissão imprópria na denúncia ilustra como a violação do dever de garante pode ser utilizada para reforçar a responsabilidade penal em crimes complexos, onde ação e omissão se entrelaçam para produzir o resultado fatal. Em outros casos de omissão parental, como a negligência em buscar tratamento médico para filhos doentes, a jurisprudência tem confirmado condenações por homicídio culposo, mas com a possibilidade de aplicação do perdão judicial, previsto no Art. 121, § 5º, do Código Penal, quando as consequências do crime atingem os próprios pais de forma tão grave que a pena se torna desnecessária.

3.3 Omissão Corporativa e Ambiental: A Tragédia de Brumadinho (2019)

Contexto: Em 25 de janeiro de 2019, a barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, de propriedade da mineradora Vale S.A., em Brumadinho (MG), rompeu-se, liberando uma avalanche de rejeitos de minério que soterrou instalações da própria empresa e comunidades vizinhas. A tragédia resultou na morte de 272 pessoas (incluindo nascituros) e causou um desastre ambiental de proporções catastróficas.

Responsabilidade por Omissão: O Ministério Público de Minas Gerais denunciou 16 pessoas, incluindo o ex-presidente da Vale, Fábio Schvartsman, e executivos da empresa de auditoria alemã TÜV SÜD, por homicídio doloso qualificado (por motivo torpe, meio cruel e recurso que dificultou a defesa da vítima) 270 vezes, além de diversos crimes ambientais. A acusação foi fundamentada na teoria da omissão imprópria, com base no dolo eventual. A tese central é que os dirigentes, na posição de garantidores (tanto por dever legal de segurança quanto por ingerência, ao manterem uma estrutura de alto risco), tinham pleno conhecimento, por meio de relatórios internos e alertas de especialistas, dos riscos iminentes e inaceitáveis de liquefação e rompimento da barragem. Ao optarem por não tomar as providências necessárias para paralisar as atividades e evacuar a área – priorizando, segundo a acusação, os lucros da empresa –, eles teriam assumido o risco de produzir as mortes.

Andamento do Processo: O processo criminal tem sido marcado por uma longa batalha jurídica sobre a competência para o julgamento. Inicialmente na Justiça Estadual de Minas Gerais, o STJ, em outubro de 2021, declarou a competência da Justiça Federal, anulando todos os atos decisórios proferidos até então, incluindo o recebimento da denúncia. Essa decisão representou um grande atraso no andamento do caso. Anos após o crime, ainda não houve condenações criminais, e o processo segue em tramitação na Justiça Federal, com os familiares das vítimas lutando para que os réus sejam julgados pelo Tribunal do Júri, o que depende da manutenção da acusação por homicídio doloso, e não por um crime culposo.

3.4 Omissão na Prática Médica

Contexto: A responsabilidade penal do médico por omissão é um tema recorrente e de grande sensibilidade. O médico, ao assumir o tratamento de um paciente, coloca-se na posição de garantidor por assunção voluntária de responsabilidade. Sua omissão em adotar procedimentos indicados, em realizar diagnósticos corretos ou em prestar o devido atendimento pode resultar em morte, configurando crime.

Jurisprudência:

Homicídio Culposo: Em um caso no Rio Grande do Sul, um médico obstetra foi condenado a mais de seis anos de prisão por homicídio culposo. Ele esqueceu uma gaze cirúrgica dentro da cavidade abdominal de uma paciente durante uma cesariana, o que causou uma infecção generalizada e a morte da mulher meses depois. A conduta foi classificada como negligência grave.

Homicídio com Dolo Eventual: Em Santa Catarina, um médico foi condenado a 30 anos de prisão por homicídio com dolo eventual. Ele realizou um procedimento desnecessário e inadequado em uma paciente, cobrando por um serviço que deveria ser gratuito pelo SUS. O procedimento causou uma grave infecção. Mesmo com a paciente retornando ao hospital com fortes dores, o médico a mandou para casa. A paciente morreu no dia seguinte por infecção generalizada. O Tribunal do Júri entendeu que, ao ignorar o estado crítico da paciente e a gravidade do risco que ele mesmo criou, o médico assumiu o risco de produzir o resultado morte.

Omissão de Socorro: No Rio de Janeiro, uma médica foi investigada por omissão de socorro após se recusar a atender uma criança de um ano e meio em estado grave, que estava em uma ambulância do seu plano de saúde. A médica alegou que seu expediente havia terminado e mandou a ambulância embora. A criança faleceu enquanto aguardava um novo veículo de socorro.

A análise desses casos emblemáticos no Brasil revela uma dissonância crítica entre a responsabilização nas esferas cível e criminal, especialmente em crimes omissivos complexos envolvendo o Estado e grandes corporações. Enquanto a esfera cível, com seus critérios de prova mais flexíveis e a possibilidade de responsabilidade objetiva, consegue com maior frequência condenar o Estado (Boate Kiss) e empresas (Brumadinho) por falhas sistêmicas, a esfera criminal enfrenta enormes dificuldades. Para condenar um agente público ou um diretor de empresa por homicídio doloso por omissão, é necessário individualizar a conduta e provar, para além de qualquer dúvida razoável, que aquele agente específico tinha conhecimento do risco concreto e iminente de morte e, conscientemente, assumiu esse resultado ao não agir. Em estruturas burocráticas e corporativas complexas, onde as responsabilidades são diluídas e as decisões são colegiadas, essa prova do dolo eventual individual torna-se um desafio quase intransponível. Isso frequentemente leva a arquivamentos, desclassificações para crimes culposos ou de menor potencial ofensivo, gerando uma profunda percepção social de impunidade e de que, no final, a vida humana tem menos valor do que os interesses econômicos ou corporativos.

Parte II: Perspectivas de Direito Comparado

Capítulo 4: A Omissão nos Sistemas de Common Law

4.1 Reino Unido: Gross Negligence Manslaughter

Conceito: O sistema de common law inglês não possui uma cláusula geral codificada para a omissão imprópria como o Brasil ou a Alemanha. A responsabilidade por mortes decorrentes de omissão é tratada principalmente através do crime de gross negligence manslaughter (homicídio por negligência grosseira). Trata-se de um crime de criação jurisprudencial (common law offence) que ocorre quando a morte de uma pessoa é resultado de um ato ou omissão grosseiramente negligente por parte de alguém que lhe devia um duty of care (dever de cuidado).

O Teste de Adomako: O caso seminal R v Adomako estabeleceu o teste definitivo para a configuração deste crime, que exige a prova cumulativa de quatro elementos :

Existência de um Duty of Care: O réu devia um dever de cuidado à vítima.

Quebra do Dever (Breach of Duty): O réu violou esse dever por meio de um ato ou omissão.

Causalidade (Causation): A quebra do dever causou a morte da vítima.

Negligência Grosseira (Gross Negligence): A quebra do dever foi tão "grosseiramente negligente" que o júri a considera criminosa. A questão a ser respondida pelo júri é se a conduta do réu foi "tão ruim em todas as circunstâncias, tendo em conta o risco de morte envolvido, que deve ser julgada como um ato ou omissão criminosa".

Fontes do Duty of Care: O dever de cuidado, que é a pedra angular do delito, não é presumido e deve ser estabelecido em cada caso. A jurisprudência reconhece que ele pode surgir de diversas situações, como relações contratuais (médico-paciente), familiares (pais-filhos), assunção voluntária de cuidado ou, de forma crucial para a teoria da omissão, pela criação de uma situação de perigo.

Caso R v Evans : Este caso foi fundamental para consolidar a responsabilidade por omissão decorrente da criação de perigo. A ré, Gemma Evans, forneceu heroína à sua meia-irmã de 16 anos, que teve uma overdose. Evans e sua mãe, cientes dos sintomas, não buscaram ajuda médica por medo de serem responsabilizadas criminalmente, e a jovem morreu. O Tribunal de Apelação confirmou a condenação de Evans por gross negligence manslaughter, estabelecendo que, ao contribuir para a criação de uma situação de perigo que ela sabia ou deveria saber ser potencialmente fatal, a ré assumiu um duty of care de tomar medidas razoáveis para salvar a vítima. Sua omissão em buscar socorro constituiu a quebra grosseiramente negligente desse dever.

Corporate Manslaughter: Historicamente, era extremamente difícil condenar uma corporação por homicídio no Reino Unido, pois o common law exigia a identificação de um "controlling mind" (uma mente dirigente, como um diretor sênior) cuja negligência grosseira pudesse ser atribuída à empresa como um todo. Em desastres de grande escala, com falhas sistêmicas, essa individualização era quase impossível. Para superar essa lacuna, o Parlamento aprovou o Corporate Manslaughter and Corporate Homicide Act 2007. A lei criou um novo crime que permite a condenação de uma organização se a forma como suas atividades são gerenciadas ou organizadas por sua "alta administração" (senior management) causa uma morte e constitui uma violação grave de um dever de cuidado relevante. A pena é uma multa de valor ilimitado, além de ordens de publicidade e remediação.

Caso do Incêndio da Grenfell Tower (2017): A tragédia, que vitimou 72 pessoas em um prédio residencial em Londres, foi atribuída a falhas sistêmicas, incluindo o uso de revestimento externo altamente inflamável em uma reforma. A polícia metropolitana iniciou uma das maiores investigações de sua história, considerando acusações de gross negligence manslaughter contra indivíduos e de corporate manslaughter contra a empresa de gestão do edifício (KCTMO) e outras corporações envolvidas na fabricação e instalação dos materiais. O caso exemplifica a extrema complexidade de aplicar a lei a desastres com múltiplos atores corporativos e públicos, mas a existência de uma legislação específica para o homicídio corporativo oferece um caminho para a responsabilização que não existe de forma tão clara no Brasil, onde a acusação dependeria da difícil prova do dolo eventual individual dos dirigentes.

4.2 Estados Unidos: Omission Liability e Involuntary Manslaughter

Princípio Geral: O direito penal americano, seguindo a tradição do common law, geralmente não impõe um dever geral de socorro e não pune a omissão, a menos que exista um duty to act (dever de agir) legalmente reconhecido. A responsabilidade por omissão (omission liability) é a exceção, não a regra, refletindo uma forte ênfase na liberdade individual.

Fontes do Duty to Act: As fontes desse dever são estabelecidas pela jurisprudência e por estatutos específicos, sendo muito similares às do direito britânico :

Dever imposto por lei (statute), como a obrigação de reportar abuso infantil.

Relação de status especial (pais e filhos, cônjuges).

Dever contratual (ex: salva-vidas, enfermeiro).

Assunção voluntária de cuidado, especialmente quando isola a vítima de outras fontes de socorro.

Criação do perigo.

Involuntary Manslaughter por Omissão: Uma morte não intencional que resulta da omissão em cumprir um dever legal pode ser tipificada como involuntary manslaughter (homicídio involuntário, análogo ao homicídio culposo no Brasil). Isso ocorre quando a omissão constitui criminal negligence (negligência criminosa) ou recklessness (imprudência), um padrão de conduta muito mais grave do que a simples negligência civil.

Caso People v. Beardsley (Michigan, 1907): Este é um caso clássico que ilustra os estritos limites do dever de agir. O réu, Beardsley, estava em seu apartamento com sua amante, Blanche Burns, que teve uma overdose de morfina. Temendo que sua esposa o descobrisse, ele a levou para o porão em vez de chamar um médico, e ela morreu. O Supremo Tribunal de Michigan reverteu sua condenação por homicídio, argumentando que não havia um dever legal de cuidado entre eles. A relação de amantes, por si só, não se enquadrava em nenhuma das categorias reconhecidas que criam um dever legal de agir (como a relação entre marido e mulher ou pais e filhos). O tribunal concluiu que, embora Beardsley tivesse um dever moral, sua omissão não constituía um crime.

Caso Commonwealth v. Twitchell (Massachusetts, 1993): Este caso expõe a colisão entre a liberdade religiosa, garantida pela Primeira Emenda da Constituição dos EUA, e o dever legal dos pais de prover cuidados médicos essenciais aos filhos. David e Ginger Twitchell, membros da igreja Christian Science, foram condenados por involuntary manslaughter pela morte de seu filho de dois anos, Robyn. Eles trataram uma obstrução intestinal, condição cirurgicamente corrigível, apenas com orações, em conformidade com suas crenças religiosas. A Suprema Corte Judicial de Massachusetts, embora tenha posteriormente revertido a condenação por uma tecnicalidade (os pais haviam confiado em um parecer enganoso do Procurador-Geral do estado sobre uma isenção legal), afirmou o princípio fundamental de que o dever parental de buscar cuidados médicos para um filho em perigo de vida prevalece sobre as crenças religiosas dos pais.

Capítulo 5: A Omissão nos Sistemas de Civil Law

5.1 Alemanha: A Teoria da Garantenstellung

§ 13 StGB (Begehen durch Unterlassen - Comissão por Omissão): O direito penal alemão, que exerceu profunda influência na doutrina brasileira, possui uma estrutura dogmática altamente desenvolvida para os crimes omissivos. O § 13 do Código Penal Alemão (StGB) funciona como uma cláusula geral que equipara a omissão à ação para a imputação de crimes de resultado, de forma muito similar ao Art. 13, § 2º, do Código Penal brasileiro. A punibilidade por um crime comissivo (como homicídio) através de uma omissão depende de dois requisitos centrais: a existência de uma Garantenstellung (posição de garantidor) e a equivalência normativa entre a omissão e a ação (a chamada Entsprechungsklausel).

Fontes da Garantenstellung: A doutrina alemã, de forma sistemática, divide os garantidores em duas grandes categorias, com base na origem de seu dever :

Beschützergarant (Garantidor de Proteção): É aquele que tem o dever de proteger um bem jurídico específico contra todos os perigos que possam ameaçá-lo. As fontes desse dever incluem: lei (relações familiares, como pais e filhos), comunidades de vida e de perigo (como em uma expedição de alpinismo), assunção voluntária de uma função de proteção (contrato com um médico ou babá) e o exercício de uma função pública (policial).

Überwachungsgarant (Garantidor de Vigilância): É aquele que tem o dever de controlar uma fonte de perigo para que ela não cause danos a bens jurídicos de terceiros. As fontes desse dever incluem: responsabilidade por coisas perigosas sob seu controle (o dono de um animal feroz), supervisão de pessoas (o responsável por um doente mental) e, a mais importante em termos práticos, a Ingerenz (criação de um risco por um comportamento anterior).

§ 323c StGB (Unterlassene Hilfeleistung - Omissão de Socorro): Assim como no Brasil, o direito alemão distingue claramente o dever especial do garantidor do dever geral de solidariedade. O § 323c do StGB é um crime omissivo próprio que pune qualquer pessoa que não presta socorro em um acidente ou situação de perigo comum, quando a ajuda é exigível e não implica risco significativo. A pena é muito menor do que a de um homicídio por omissão cometido por um garantidor via § 13.

Jurisprudência (Caso do Canal de Weiden): Um caso notório julgado pelo Tribunal Federal de Justiça da Alemanha (BGH) em 2022 ilustra perfeitamente essa distinção. Um jovem, altamente intoxicado por álcool e drogas sintéticas, caiu em um canal fluvial e se afogou. Seus três amigos, que estavam presentes, não prestaram socorro. O tribunal condenou dois dos amigos por "exposição com resultado morte" (§ 221 StGB), um crime que pode ser cometido por omissão. A fundamentação foi que, ao acompanharem o amigo que mal conseguia andar para fora do bar, eles assumiram de fato uma posição de garantidores de proteção, retirando-o de um ambiente seguro e expondo-o a novos perigos. O terceiro amigo, que se manteve à distância e não participou ativamente do acompanhamento, não foi considerado garantidor e foi condenado apenas pelo crime de omissão de socorro (§ 323c), com uma pena significativamente menor.

5.2 França: O Dever de Solidariedade e a Non-assistance à personne en péril

Art. 223-6 do Code Pénal: O direito francês adota uma abordagem distinta e notavelmente rigorosa quanto ao dever geral de socorro. O Art. 223-6, alínea 2, do Código Penal pune "quem voluntariamente se abstém de prestar a uma pessoa em perigo a assistência que, sem risco para si ou para terceiros, poderia prestar, seja por sua ação pessoal, seja provocando um socorro".

Natureza do Delito: A característica mais marcante deste delito é sua natureza de "délit formel" (crime formal ou de mera conduta). Isso significa que o crime se consuma com a simples omissão voluntária no momento em que o agente percebe o perigo. O resultado posterior – se a vítima sobrevive ou morre – é irrelevante para a configuração do crime. O que a lei pune é a quebra do dever de solidariedade humana, a indiferença diante do perigo alheio, e não a causação do resultado.

Aplicação em Casos de Morte: Consequentemente, se a omissão de socorro é seguida pela morte da vítima, o agente não responde por homicídio (seja doloso ou culposo), mas sim pelo crime autônomo de non-assistance à personne en péril. A pena prevista é de até 5 anos de prisão e 75.000 euros de multa, podendo ser agravada se a vítima for menor de 15 anos. A jurisprudência francesa é firme ao reiterar que o resultado é indiferente para a consumação do crime, focando exclusivamente na conduta omissiva.

Caso Sarah Halimi (2017): Este caso chocou a França pelo assassinato de uma mulher judia por seu vizinho, que foi posteriormente declarado penalmente irresponsável devido a um surto psicótico agudo induzido pelo uso de cannabis. Durante o crime, vizinhos chamaram a polícia, que chegou ao local, mas demorou a intervir no apartamento da vítima. A conduta dos policiais foi objeto de uma comissão parlamentar de inquérito que investigou possíveis disfunções. Embora a questão da non-assistance à personne en péril por parte dos agentes tenha sido levantada, não houve condenações, com as autoridades justificando a demora pela complexidade e pela rápida sucessão dos fatos.

A abordagem francesa representa uma escolha legislativa fundamentalmente diferente daquela adotada pelos sistemas brasileiro e alemão. Ao tratar a omissão de socorro com resultado morte como um crime formal de perigo, o sistema francês foca na reprovação da conduta (a quebra da solidariedade) em vez de se engajar na complexa tarefa de imputar o resultado (a morte) ao omitente. Enquanto o Brasil (Art. 135) qualifica a pena pelo resultado e (no Art. 13, § 2º) equipara a omissão do garantidor a um homicídio, a França opta por uma solução que, embora resulte em penas potencialmente menores em casos de morte, oferece maior segurança jurídica. Evita-se a controversa causalidade normativa, punindo-se o ato de indiferença em si, considerado uma grave violação do pacto social.

Parte III: Análise Comparativa e Conclusões

Capítulo 6: Diálogos e Divergências entre os Sistemas Jurídicos

A análise dos diferentes ordenamentos jurídicos revela abordagens distintas, mas funcionalmente convergentes, para o problema da omissão com resultado morte. As tabelas a seguir sintetizam as principais características de cada sistema.

Tabela 1: Comparativo da Omissão Imprópria (Dever Especial de Agir)

Característica

Brasil

Alemanha

Reino Unido

Estados Unidos

Dispositivo/Doutrina

Art. 13, § 2º, CP (Comissão por Omissão)

§ 13 StGB (Begehen durch Unterlassen)

Gross Negligence Manslaughter (Common Law)

Involuntary Manslaughter por Omissão (Common Law e Estatutos)

Natureza da Norma

Cláusula geral codificada

Cláusula geral codificada

Doutrina jurisprudencial

Doutrina jurisprudencial e estatutária

Fontes do Dever

Lei; Assunção de responsabilidade; Ingerência

Lei; Contrato; Confiança; Comunidades; Ingerência

Relação especial; Contrato; Assunção de cuidado; Criação de perigo

Relação de status; Contrato; Assunção de cuidado; Criação de perigo

Requisito Subjetivo

Dolo (direto ou eventual) ou Culpa

Dolo ou Culpa

Gross Negligence (padrão objetivo)

Criminal Negligence ou Recklessness (padrão objetivo)

Crime Imputado

Crime de resultado (ex: Homicídio - Art. 121)

Crime de resultado (ex: Homicídio - § 212)

Manslaughter (crime autônomo)

Involuntary Manslaughter (crime autônomo)


Tabela 2: Comparativo da Omissão Própria (Dever Geral de Socorro)

Característica

Brasil

Alemanha

França

EUA / Reino Unido

Dispositivo Legal

Art. 135, CP

§ 323c, StGB

Art. 223-6, Code Pénal

Ausência de norma geral

Conduta Exigida

Prestar assistência ou chamar autoridade

Prestar socorro

Prestar assistência ou chamar socorro

Nenhuma (salvo dever especial)

Relação com Morte

Causa de aumento de pena (pena triplicada)

Irrelevante para o tipo básico

Irrelevante para a configuração do crime

Não aplicável

Natureza do Crime

Crime de perigo qualificado pelo resultado

Crime de perigo puro

Crime formal (de mera conduta)

Não há crime geral

Pena Base

Detenção, 1 a 6 meses, ou multa

Prisão de até 1 ano ou multa

Prisão de até 5 anos e multa de €75.000

N/A


6.1 O Dever Especial de Agir: Garantidor, Duty of Care e Garantenstellung

A análise comparativa demonstra uma notável convergência funcional entre os conceitos de "Garantidor" no Brasil, Garantenstellung na Alemanha, e as situações que geram um duty to act ou duty of care nos sistemas de common law. Todos esses institutos têm o mesmo propósito: selecionar um círculo restrito de indivíduos que, por sua relação especial com a vítima ou com uma fonte de perigo, possuem um dever qualificado de proteção. A violação desse dever os torna responsáveis por um crime de resultado por omissão, equiparando sua inação a uma ação criminosa.

A principal divergência reside na fonte e na formalização desse dever. Nos sistemas de civil law (Brasil e Alemanha), as fontes do dever de garante estão codificadas em uma cláusula geral (Art. 13, § 2º, CP; § 13 StGB), em respeito ao princípio da legalidade estrita. Já nos sistemas de common law, o dever é de criação predominantemente jurisprudencial, conferindo aos juízes uma maior flexibilidade para reconhecer novas situações geradoras de dever de cuidado, como visto no caso R v Evans.

6.2 O Dever Geral de Socorro: Um Paralelo Internacional

Aqui, a clivagem entre os sistemas de civil law e common law é mais acentuada. Brasil, Alemanha e, de forma ainda mais enfática, a França, criminalizam a omissão de socorro por qualquer cidadão, consagrando um princípio de solidariedade social como um dever jurídico. O sistema francês se destaca ao tratar a violação desse dever como um crime formal grave, punindo a indiferença em si, independentemente do resultado.

Em contraste, o common law, tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos, tradicionalmente rejeita a existência de um dever geral de socorro, priorizando a liberdade individual sobre a solidariedade imposta pelo Estado. Como o caso People v. Beardsley deixou claro, a responsabilidade por omissão só surge quando há uma relação especial preexistente que fundamenta um dever legal de agir.

6.3 A Responsabilidade de Pessoas Jurídicas por Omissão

A crescente complexidade das sociedades modernas e os riscos gerados por atividades corporativas expuseram as limitações das teorias tradicionais de omissão, focadas no agente individual. O Reino Unido, com o Corporate Manslaughter Act 2007, oferece o modelo legislativo mais avançado para enfrentar esse desafio. Ao focar em falhas sistêmicas de gestão pela "alta administração", a lei britânica contorna a dificuldade de individualizar a culpa em estruturas corporativas complexas, permitindo a responsabilização criminal da própria pessoa jurídica.

No Brasil, a tentativa de responsabilizar criminalmente os dirigentes da Vale pela tragédia de Brumadinho, com base na teoria da omissão imprópria e do dolo eventual, demonstra as enormes dificuldades dogmáticas e probatórias do modelo tradicional. A ausência de um mecanismo análogo ao corporate manslaughter britânico evidencia uma lacuna legislativa que dificulta a punição de omissões criminosas sistêmicas, que resultam em desastres de grande escala.

Conclusão

Síntese dos Achados

A punição da omissão com resultado morte é um desafio universal para o direito penal, com soluções que variam conforme a tradição jurídica e os valores priorizados por cada sociedade: a legalidade estrita versus a flexibilidade jurisprudencial; a liberdade individual versus a solidariedade social. Os sistemas de civil law, como o brasileiro e o alemão, desenvolveram uma sofisticada teoria do garantidor para equiparar a omissão qualificada à ação homicida. Os sistemas de common law chegam a um resultado funcionalmente similar por meio da doutrina do gross negligence manslaughter, baseada na quebra de um duty of care. A França, por sua vez, adota uma solução única, punindo a falha no dever de solidariedade como um crime formal autônomo, desvinculado do resultado morte.

Desafios Dogmáticos e Probatórios

O principal desafio em todos os sistemas que equiparam a omissão à causação da morte reside na prova do nexo de evitação e, sobretudo, do elemento subjetivo do garantidor. Em contextos de responsabilidade diluída, como em grandes corporações ou na administração pública, provar que um diretor ou fiscal específico agiu com dolo eventual – ou seja, previu o resultado morte como provável, foi indiferente a ele e decidiu não agir – é uma tarefa hercúlea para a acusação. Essa dificuldade probatória é a principal causa da dissonância entre a responsabilidade civil, mais facilmente estabelecida, e a responsabilidade criminal, que frequentemente resulta em impunidade em casos de grande repercussão social.

Reflexões Finais

A crescente complexidade social e os riscos sistêmicos criados por atividades corporativas, tecnológicas e pela própria omissão do Estado exigem uma reavaliação constante dos instrumentos do direito penal. A experiência internacional, especialmente a britânica com o corporate manslaughter, oferece um importante paradigma para o debate sobre a necessidade de mecanismos mais eficazes para coibir a omissão criminosa sistêmica. A responsabilização penal não pode se limitar ao agente individual que aperta o gatilho; ela deve ser capaz de alcançar também aqueles que, em posições de poder e dever, criam ou mantêm as condições para que tragédias ocorram, optando pela inércia calculada em detrimento da proteção da vida. Garantir que o direito penal possa responder a essas formas modernas de criminalidade é essencial para que a proteção à vida não seja sacrificada no altar da omissão.

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