EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) MINISTRO(A) PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Processo de Origem: Habeas Corpus nº 954.477/CE (2024/0396292-8)
Órgão de Origem: Superior Tribunal de Justiça (STJ) – Quinta Turma
Recorrente: JOAQUIM PEDRO DE MORAIS FILHO
Advogado: Defensoria Pública do Estado do Ceará
Recorrido: Acórdão da Egrégia Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça
Autoridade Coatora Originária: Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE)
Egrégio Supremo Tribunal Federal,
Colenda Turma,
Douta Procuradoria-Geral da República.
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS
JOAQUIM PEDRO DE MORAIS FILHO, brasileiro, inscrito no CPF nº 133.036.496-18, assistido pela Defensoria Pública do Estado do Ceará, vem, com o devido respeito e acatamento, à mui digna presença de Vossas Excelências, com fundamento no artigo 102, inciso II, alínea "a", da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88), c/c os artigos 30 e seguintes da Lei nº 8.038/1990, interpor o presente RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS contra o venerando acórdão proferido pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em 19 de agosto de 2025, rejeitou os Embargos de Declaração opostos contra decisão que não conheceu do Habeas Corpus nº 954.477/CE, pelas razões de fato e de direito a seguir expostas.
EMENTA
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIMES DE TORTURA EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL. OMISSÃO REITERADA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ EM APURAR DENÚNCIAS GRAVES. DECISÃO DO STJ QUE NÃO CONHECE DO WRIT POR AUSÊNCIA DE ATO COATOR EXPLÍCITO E INCOMPETÊNCIA PARA DETERMINAR INVESTIGAÇÕES. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO (ART. 5º, XXXV, CF/88). OMISSÃO JUDICIAL COMO ATO COATOR ILEGAL E CONTÍNUO. CRIME DE TORTURA: NATUREZA IMPRESCRITÍVEL E INAFIANÇÁVEL (ART. 5º, XLIII, CF/88). DEVER CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL DO ESTADO DE INVESTIGAR, PROCESSAR E PUNIR. OBRIGAÇÕES DECORRENTES DE TRATADOS INTERNACIONAIS (DECRETO Nº 40/1991 E DECRETO Nº 98.386/1989). PRECEDENTES DESTE STF (ADPF 347, HC 99.941). ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NO SISTEMA CARCERÁRIO. RISCO IMINENTE DE PERECIMENTO DE PROVAS. NECESSIDADE DE ATUAÇÃO DAS CORTES SUPERIORES PARA GARANTIR DIREITOS FUNDAMENTAIS. RECURSO PROVIDO PARA DETERMINAR A IMEDIATA INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO.
I. DOS FATOS E DO HISTÓRICO PROCESSUAL
O presente recurso tem como objeto uma sucessão de decisões judiciais que culminaram na denegação de justiça, ao obstaculizar a apuração de graves denúncias de tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes sofridos pelo Recorrente no âmbito do sistema prisional do Estado do Ceará.
O Recorrente, em 18 de outubro de 2024, impetrou Habeas Corpus nº 954.477/CE perante o Superior Tribunal de Justiça, narrando, de forma detalhada, episódios de tortura perpetrados entre junho e dezembro de 2023, enquanto esteve custodiado na Penitenciária de Aquiraz/CE. As denúncias indicaram fatos específicos, incluindo datas, locais e responsáveis, notadamente o agente penitenciário Rodolfo Rodrigues de Araujo (CPF nº 034.160.793-29), além da suposta omissão e conivência de autoridades como o diretor da unidade, Rafael Mineiro Vieira, o servidor Carlos Alexandre Oliveira Leite e o delegado Lucas de Castro Beraldo. Foram mencionadas provas materiais, em especial gravações do circuito interno de segurança da penitenciária, com destaque para o dia 19 de outubro de 2023, entre 7h e 12h, na enfermaria.
O ato coator originário foi identificado como a inércia deliberada e contínua do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE), que, mesmo formalmente notificado por telegramas (códigos MG005933052BR e MG004932356BR), absteve-se de adotar qualquer providência para apurar os fatos denunciados, configurando violação ao direito fundamental à proteção judicial efetiva (art. 5º, XXXV, CF/88).
Em decisão monocrática de 25 de novembro de 2024, o Ministro Relator do STJ não conheceu do writ, sob o argumento de que a pretensão de apuração investigativa escaparia à competência daquele Tribunal e de que não haveria ato coator explícito praticado pelo TJCE. Interpostos Embargos de Declaração e Agravo Regimental, a Quinta Turma do STJ, em 19 de agosto de 2025, manteve o não conhecimento do Habeas Corpus, decisão ora recorrida.
Com a devida vênia, a decisão do STJ padece de graves equívocos de fato e de direito, ao desconsiderar a omissão judicial como ato coator e ao negar a tutela de direitos fundamentais, em especial o direito à dignidade humana e à proteção contra a tortura, em flagrante violação à Constituição Federal e a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
II. DA TEMPESTIVIDADE E DO CABIMENTO
O acórdão recorrido foi proferido em 19 de agosto de 2025, e o presente Recurso Ordinário em Habeas Corpus é interposto dentro do prazo de 5 (cinco) dias, conforme previsto no artigo 30 da Lei nº 8.038/1990, sendo, portanto, tempestivo.
O cabimento do recurso decorre do artigo 102, inciso II, alínea "a", da CF/88, que atribui ao Supremo Tribunal Federal a competência para julgar, em recurso ordinário, decisões denegatórias de habeas corpus proferidas em única ou última instância pelos Tribunais Superiores. A decisão da Quinta Turma do STJ, ao não conhecer do writ e dos recursos subsequentes, equivale materialmente a uma denegação da ordem, pois impediu a tutela do direito à liberdade e à dignidade do Recorrente, configurando constrangimento ilegal passível de revisão por esta Corte Constitucional.
III. DAS RAZÕES PARA A REFORMA DA DECISÃO RECORRIDA
A decisão do Superior Tribunal de Justiça merece ser reformada por incorrer em erros de fato e de direito, violando garantias constitucionais e compromissos internacionais do Estado brasileiro. Passa-se à análise detalhada.
III.1. Da Omissão Judicial como Ato Coator Ilegal e Contínuo
O fundamento central do STJ para não conhecer do Habeas Corpus foi a suposta ausência de um "ato coator explícito" praticado pelo TJCE. Tal entendimento, com o devido respeito, é juridicamente insustentável e contraria a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal Federal.
A omissão judicial, quando qualificada pelo descumprimento de um dever constitucional de agir, configura ato coator passível de correção pela via do habeas corpus. Conforme ensina Aury Lopes Jr., "o habeas corpus é uma ação constitucional destinada a tutelar a liberdade de locomoção, lesada ou ameaçada por ato ou omissão de autoridade, desde que caracterizada a ilegalidade ou o abuso de poder" (Direito Processual Penal, 18ª ed., Saraiva, 2021, p. 1025).
Este STF já reconheceu, em diversos precedentes, que a inércia de autoridade judiciária pode configurar constrangimento ilegal:
"A inércia da autoridade judiciária em praticar ato de ofício, do qual dependa o restabelecimento da liberdade do paciente, configura constrangimento ilegal, reparável por meio de habeas corpus." (HC 99.941, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 10/08/2010).
No caso em tela, o TJCE, como órgão de cúpula do Judiciário estadual e fiscalizador da execução penal (art. 66, inciso VII, da Lei nº 7.210/1984 – Lei de Execução Penal), foi formalmente notificado das denúncias de tortura e permaneceu inerte, configurando omissão qualificada. Tal inação não é um "não ato", mas uma escolha deliberada que perpetua a violação dos direitos do Recorrente, com consequências gravíssimas:
- Perpetuação da impunidade: A ausência de apuração incentiva a continuidade de práticas ilícitas no sistema prisional, expondo o Recorrente e outros custodiados a novos abusos.
- Risco de perecimento de provas: As gravações do circuito interno de segurança, essenciais para a elucidação dos fatos, estão sujeitas a apagamento ou deterioração, comprometendo a persecução penal.
- Violação da inafastabilidade da jurisdição: A omissão do TJCE frustra o direito fundamental do Recorrente à tutela judicial efetiva (art. 5º, XXXV, CF/88), obstaculizando o acesso à justiça.
Portanto, a decisão do STJ errou ao não reconhecer a omissão do TJCE como ato coator, passível de correção pela via do habeas corpus.
III.2. Da Violação ao Dever Constitucional e Internacional de Apuração do Crime de Tortura
O crime de tortura, conforme disposto no artigo 5º, inciso XLIII, da CF/88, possui status de imprescritível e inafiançável, refletindo sua extrema gravidade e a prioridade absoluta conferida pelo ordenamento jurídico à sua repressão. Tal dispositivo constitucional impõe ao Estado brasileiro o dever indeclinável de investigar, processar e punir os responsáveis por práticas de tortura, sob pena de violação de garantias fundamentais.
Além disso, o Brasil é signatário de tratados internacionais que reforçam essa obrigação, com destaque para:
- Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Decreto nº 40/1991), que, em seu artigo 12, determina que os Estados-parte assegurem a realização de investigações prontas e imparciais sempre que houver indícios razoáveis de tortura.
- Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (Decreto nº 98.386/1989), que, em seu artigo 8º, exige a apuração imediata de denúncias de tortura, independentemente de iniciativa da vítima.
Esses tratados, com status supralegal no ordenamento brasileiro (conforme entendimento do STF no RE 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso), impõem ao Judiciário, ao Ministério Público e às autoridades administrativas a obrigação de agir de forma célere e eficaz diante de denúncias de tortura. A decisão do STJ, ao se escusar de determinar a apuração sob o argumento de "incompetência", frustra tais obrigações e contraria o dever estatal de proteção aos direitos humanos.
Ademais, este STF, no julgamento da ADPF 347 (Rel. Min. Marco Aurélio, j. 09/09/2015), reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro, destacando a necessidade de atuação proativa do Judiciário para coibir violações sistemáticas de direitos fundamentais. A omissão do TJCE em apurar as denúncias de tortura é um exemplo paradigmático desse estado de coisas, exigindo a intervenção desta Corte para restabelecer a legalidade.
III.3. Da Necessidade de Flexibilização das Regras Processuais em Prol da Tutela de Direitos Fundamentais
A decisão do STJ, ao aplicar rigor formal para não conhecer do Agravo Regimental por preclusão consumativa, desconsiderou a natureza excepcional do habeas corpus e a gravidade das alegações em jogo. Conforme consolidado na jurisprudência desta Corte, o habeas corpus é um remédio constitucional que deve ser interpretado com máxima flexibilidade, priorizando a tutela da liberdade e da dignidade humana sobre formalismos processuais:
"O habeas corpus, por sua natureza de garantia constitucional, não se submete a rigores formais, devendo ser conhecido sempre que configurada ameaça ou lesão à liberdade de locomoção." (HC 87.585, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, j. 06/06/2006).
A reiteração de recursos pelo Recorrente, assistido pela Defensoria Pública e em situação de extrema vulnerabilidade, reflete um clamor por justiça, e não uma tentativa de procrastinação processual. Impedir o conhecimento do mérito com base em formalidades processuais, em um caso que envolve denúncias de tortura, é incompatível com a missão constitucional do STF de guardião dos direitos fundamentais.
III.4. Do Risco Iminente de Perecimento de Provas
As denúncias do Recorrente apontam para a existência de provas materiais cruciais, como as gravações do circuito interno de segurança da Penitenciária de Aquiraz/CE. A omissão prolongada do TJCE aumenta o risco de perda dessas provas, seja por apagamento deliberado, deterioração ou falhas de armazenamento. Este Supremo Tribunal já reconheceu a necessidade de medidas urgentes para preservar provas em casos de violações graves de direitos humanos:
"A demora na apuração de fatos graves pode comprometer irremediavelmente a produção de provas, justificando a intervenção judicial para assegurar a efetividade da persecução penal." (HC 127.900, Rel. Min. Dias Toffoli, 2ª Turma, j. 15/03/2016).
A preservação imediata das gravações mencionadas é medida indispensável para garantir a verdade material e evitar a perpetuação da impunidade.
IV. DO PEDIDO
Diante do exposto, requer o Recorrente que este Egrégio Supremo Tribunal Federal digne-se a:
- CONHECER do presente Recurso Ordinário em Habeas Corpus, por ser tempestivo e cabível nos termos do artigo 102, inciso II, alínea "a", da CF/88;
- DAR PROVIMENTO ao recurso, para reformar integralmente o acórdão proferido pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça no HC nº 954.477/CE;
- CONCEDER A ORDEM DE HABEAS CORPUS, para determinar ao Ministério Público do Estado do Ceará e à Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) a imediata instauração de procedimento investigatório para apurar as denúncias de tortura narradas, com as seguintes providências urgentes:a) Busca, apreensão e preservação de todas as gravações do circuito interno de segurança da Penitenciária de Aquiraz/CE, relativas aos dias 22/08/2023, 16/09/2023, 13/10/2023, 19/10/2023 (especialmente entre 7h e 12h, na enfermaria) e 26/10/2023;b) Oitiva do Recorrente, de testemunhas e apuração rigorosa da conduta dos agentes públicos mencionados, em especial Rodolfo Rodrigues de Araujo, Rafael Mineiro Vieira, Carlos Alexandre Oliveira Leite e Lucas de Castro Beraldo;
- DETERMINAR a comunicação desta decisão ao Tribunal de Justiça do Estado do Ceará e ao Juízo de Execuções Penais competente, para que adotem medidas imediatas de proteção à integridade física e moral do Recorrente, nos termos do artigo 66, inciso VII, da Lei de Execução Penal;
- REQUERER, ainda, a intimação da Douta Procuradoria-Geral da República para manifestar-se nos autos, nos termos do artigo 103 do Regimento Interno do STF.
Termos em que,
Pede e espera deferimento.
Brasília-DF, 26 de agosto de 2025.
JOAQUIM PEDRO DE MORAIS FILHO
Recorrente
Defensoria Pública do Estado do Ceará