Encontrando irregularidades criminas e juridicas da sentença do Processo 1500106-18.2019.8.26.0390 Porferida por SENIVALDO DOS REIS JUNIOR
Para identificar possíveis irregularidades criminais e jurídicas na sentença apresentada, é necessário analisar o documento sob a perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro, incluindo o Código Penal (CP), o Código de Processo Penal (CPP) e a Constituição Federal (CF), bem como jurisprudências relevantes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Pontos de Análise e Possíveis Irregularidades
1. Dosimetria da Pena
A sentença condena Joaquim Pedro de Morais Filho a uma pena total de 24 anos, 5 meses e 3 dias de detenção, além de 220 dias-multa, pelos crimes de calúnia (art. 138, CP, por 4 vezes) e injúria (art. 140, CP, por 2 vezes), com aplicação de causas de aumento (art. 141, II e § 2º, CP), continuidade delitiva (art. 71, CP), concurso material (art. 69, CP) e redução por semi-imputabilidade (art. 26, parágrafo único, CP). A dosimetria apresenta os seguintes pontos questionáveis:
a) Método de Cálculo da Pena-Base
Para o crime de calúnia, a pena-base foi fixada em 3 anos e 6 meses de detenção, com aumento de 3 meses por cada uma das 6 circunstâncias judiciais negativas (culpabilidade, conduta social, personalidade, motivos, circunstâncias e consequências do crime). O juiz justifica que o cálculo sobre o intervalo entre a pena mínima (6 meses) e máxima (2 anos) é mais adequado que partir apenas da pena mínima, argumentando que isso reflete a gravidade do delito e evita injustiças.
Possível Irregularidade: Embora o juiz fundamente sua metodologia com base em uma crítica ao "automatismo" e cite precedentes do STF (como a AP 470), a jurisprudência majoritária brasileira recomenda que a pena-base seja fixada inicialmente no mínimo legal (6 meses para calúnia, art. 138, CP), com aumentos proporcionais e motivados pelas circunstâncias judiciais do art. 59, CP. O aumento de 3 meses por circunstância, totalizando 18 meses a mais sobre o mínimo, não é acompanhado de uma justificativa concreta que demonstre proporcionalidade ou excepcionalidade suficiente para quase triplicar a pena mínima. Isso pode violar o princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI, CF) e ser interpretado como excesso de discricionariedade, passível de revisão em instância superior.
b) Aplicação da Continuidade Delitiva (art. 71, CP)
O juiz reconhece a continuidade delitiva com base em 2.500 condutas (envio de e-mails, postagens, etc.) por vítima, aplicando o aumento máximo de 2/3 sobre a pena de cada crime (de 4 anos e 8 meses para 7 anos, 9 meses e 10 dias para calúnia por vítima). Para as 4 vítimas, aplica-se o concurso material (art. 69, CP), resultando em 31 anos e 1 mês, reduzido em 1/3 por semi-imputabilidade.
Possível Irregularidade:
Quantificação Excessiva: A afirmação de "ao menos 2.500 mensagens eletrônicas por vítima" (totalizando 10.000 atos para calúnia e 5.000 para injúria) carece de detalhamento probatório claro na sentença. Não há menção a um levantamento específico ou perícia que confirme esse número exato, o que pode configurar ausência de fundamentação suficiente (art. 93, IX, CF).
Proporcionalidade: O aumento máximo de 2/3 por continuidade delitiva, aplicado indiscriminadamente a milhares de atos, pode ser desproporcional, especialmente em crimes de menor potencial ofensivo como calúnia e injúria, cuja pena máxima isolada é de 2 anos e 6 meses, respectivamente. A jurisprudência do STF (ex.: HC 108221) exige que a continuidade delitiva seja objetiva e subjetivamente demonstrada, mas a sentença não especifica como cada ato foi individualizado ou conectado, podendo configurar exagero punitivo.
c) Concurso Material (art. 69, CP)
O juiz aplica o concurso material entre os crimes contra as 4 vítimas de calúnia e 2 de injúria, somando as penas. Isso é tecnicamente correto, pois os crimes atingem vítimas distintas. Contudo, a pena total (31 anos antes da redução) excede o limite de 30 anos de cumprimento efetivo previsto no art. 75, CP, o que não foi ajustado na sentença.
Possível Irregularidade: A não adequação ao limite de 30 anos antes da redução por semi-imputabilidade pode ser um erro formal, pois o juiz deveria ter explicitado que, mesmo com a soma, o cumprimento não ultrapassaria esse teto, ajustando a pena final adequadamente.
d) Redução por Semi-imputabilidade (art. 26, parágrafo único, CP)
A pena foi reduzida em 1/3 (mínimo legal), resultando em 20 anos, 8 meses e 20 dias para calúnia e 3 anos, 8 meses e 13 dias para injúria, totalizando 24 anos, 5 meses e 3 dias. O juiz justifica a redução mínima com base no laudo pericial, que indica transtorno de personalidade paranoide, mas não inimputabilidade total.
Possível Irregularidade: A escolha do mínimo (1/3) em vez de um patamar intermediário ou máximo (2/3) é fundamentada na personalidade antissocial do réu e na gravidade das condutas, mas o laudo não é transcrito integralmente, dificultando a aferição da proporcionalidade. Se o transtorno afetou significativamente a capacidade de autodeterminação, a redução mínima pode ser questionada como insuficiente, violando o princípio da proporcionalidade.
2. Regime Inicial Fechado
O regime inicial foi fixado como fechado, com base na pena superior a 8 anos (art. 33, § 2º, a, CP) e nas circunstâncias judiciais desfavoráveis.
Possível Irregularidade: A pena elevada decorre da aplicação cumulativa de continuidade delitiva e concurso material, mas, se houver revisão da pena-base ou da quantificação dos atos, o regime inicial poderia ser reavaliado. Além disso, a sentença não considera a possibilidade de progressão de regime ou a natureza dos crimes (calúnia e injúria, de menor potencial ofensivo), o que pode ser questionado em recurso.
3. Liberdade de Expressão vs. Crimes Contra a Honra
O juiz dedica extenso trecho à ponderação entre liberdade de expressão (art. 5º, IV e IX, CF) e proteção à honra (art. 5º, X, CF), concluindo que as condutas do réu não configuram exercício legítimo desse direito, mas sim crimes contra a honra, por ausência de veracidade e interesse público.
Possível Irregularidade:
A análise é robusta e cita precedentes (ex.: HC 82.424, Rcl 22328), mas não avalia suficientemente a possibilidade de o réu acreditar subjetivamente na veracidade das imputações (elemento do dolo específico). Se as postagens refletissem uma crítica exagerada, mas com algum lastro fático, poderia haver discussão sobre a tipicidade penal versus sanções civis, conforme orientação da Corte IDH (ex.: Caso Kimel vs. Argentina).
A criminalização de milhares de atos baseados em um vídeo e e-mails pode ser vista como desproporcional frente ao direito de crítica, especialmente em um contexto de redes sociais, onde a jurisprudência recente (ex.: ADPF 130) privilegia sanções a posteriori menos gravosas.
4. Prisão Preventiva Mantida
A sentença mantém a prisão preventiva com base na periculosidade do réu e na continuidade das ofensas após a denúncia.
Possível Irregularidade: O art. 387, § 1º, CPP exige fundamentação concreta para a manutenção da prisão cautelar na sentença. A remissão genérica às razões iniciais (per relationem) é admitida (STJ, RHC 86.384), mas a falta de indicação de fatos novos ou risco atual pode violar o art. 312, CPP, especialmente se o réu já estava preso desde 2020 e as plataformas foram bloqueadas (fls. 897/898).
5. Prova da Materialidade e Autoria
A sentença baseia-se em laudos periciais, depoimentos e documentos para comprovar a autoria e materialidade, incluindo o vídeo no YouTube e e-mails.
Possível Irregularidade: Não há menção a contraditório efetivo sobre o laudo pericial do vídeo (fls. 904/914) ou a especificação de cada ato imputado, o que pode comprometer o direito de defesa (art. 5º, LV, CF), sobretudo diante da quantificação de 2.500 atos por vítima.
6. Outras Observações
Assistência Judiciária Gratuita: Concedida ao réu, o que é correto, mas a sentença não suspende a exigibilidade das custas (art. 98, § 3º, CPC), o que poderia ser um erro formal.
Falta de Menção à Prescrição: Para crimes de calúnia (pena máxima de 2 anos) e injúria (6 meses), o prazo prescricional é de 4 e 2 anos, respectivamente (art. 109, CP). Considerando os fatos de 2018 e a sentença de 2022, não há análise sobre eventual prescrição, o que pode ser um vício.
Conclusão
A sentença apresenta fundamentação detalhada, mas contém potenciais irregularidades jurídico-criminais, como:
Excesso na Dosimetria: Pena-base elevada sem proporcionalidade clara, quantificação exagerada da continuidade delitiva e ausência de ajuste ao art. 75, CP.
Proporcionalidade Questionável: Aplicação de pena longa para crimes de menor potencial ofensivo, possivelmente desproporcional frente à liberdade de expressão.
Fundamentação Insuficiente: Quantificação de atos sem prova detalhada e manutenção da prisão preventiva sem fatos novos.
Possível Violação de Direitos Fundamentais: Falta de análise aprofundada do dolo específico e do contraditório sobre provas.
Esses pontos podem ser objeto de apelação ou habeas corpus, com chances de revisão em instância superior, especialmente quanto à pena e ao regime de cumprimento.